Doação de órgãos, um ato de amor ao próximo

Tércio Genzini e assistente “preparam” os rins para os transplantes que serão realizados em seguida (Fotos: Angela Peres/Secom)

Tércio Genzini e assistente “preparam” os rins para os transplantes que serão realizados em seguida (Fotos: Angela Peres/Secom)

A doação de órgãos e o transplante de rim já fazem parte da rotina médica do Acre desde 2006, e o transplante de córnea, desde 2009. São dados alcançados graças aos investimentos na capacitação dos profissionais e em equipamentos, mas com um fator que faz toda a diferença e só depende da solidariedade, a doação.

Reza a lenda da Igreja Católica que os santos Cosme e Damião, os gêmeos médicos, fizeram o primeiro transplante de que se tem notícia no mundo. O feito aconteceu com um sacristão que perdera uma perna em um acidente e os médicos transplantaram nele o membro de um cadáver negro, deixando o homem com uma perna de cada cor, mas andando. Hoje, o transplante é uma rotina na medicina que salva todos os dias a vida de muita gente.

Retirada dos ógãos durante cirurgia de captação em doador falecido. Agilidade e rapidez para preservar os órgãos e enviar fígado conservado para outro estado (Fotos: Angela Peres/Secom)

Retirada dos ógãos durante cirurgia de captação em doador falecido. Agilidade e rapidez para preservar os órgãos e enviar fígado conservado para outro Estado (Fotos: Angela Peres/Secom)

Os irmãos Cosme e Damião da atualidade não são os santos da história cristã, mas tiveram seus nomes em homenagem a eles por também serem gêmeos. Eles não são médicos nem realizaram nenhum transplante, mas um deles teve um ato também grandioso e possibilitou que duas vidas fossem salvas ao doar os rins do irmão para transplante.

Era hora da visita aos pacientes da UTI do Hospital das Clínicas do Acre (HC) no meio da tarde e na sala de espera, estava Damião aguardando o momento de ver pela última vez o irmão gêmeo, Cosme, vítima de um AVC e com morte cerebral atestada. Dali a poucas horas, Cosme teria os rins retirados para serem transplantados em dois pacientes renais crônicos.

Cosme e Damião Barbosa, de 27 anos, são de uma família humilde do interior do Amazonas e Cosme veio para Rio Branco para trabalhar como pedreiro com o tio e até então não apresentara nenhum problema grave de saúde. O tio conta que ele era alegre e estava sempre disposto, mas certo dia se queixou de estar sentindo muito calor – um pouco mais que o costume – e durante o banho caiu no chão do banheiro. Foi levado ao hospital e de lá não saiu mais.

Damião foi avisado, veio para Rio Branco, e ao chegar ao hospital se deparou com uma pergunta que não esperava e da qual nunca havia pensado antes: doar os rins do irmão. Na hora ele conta que negou, pois estava emocionado demais com a perda do emte com que quem tinha mais cumplicidade.

Durante a madrugada, mãos ágeis fazem a captação de órgãos de doador falecido (Fotos: Angela Peres/Secom)

Durante a madrugada, mãos ágeis fazem a captação de órgãos de doador falecido (Fotos: Angela Peres/Secom)

“As enfermeiras me falaram da importância da doação, me explicaram tudo, mas eu não queria que mexessem no meu irmão, queria que fosse enterrado como viera ao mundo. Daí meu tio conversou bastante comigo e eu acabei entendendo e concordando. Não me arrependo e espero que as pessoas que vão receber os rins dele sejam muito felizes. Estou muito triste, adorava meu irmão, foi como se tivessem levado um pedaço de mim, mas sei que duas outras pessoas vão viver através dele. É como colocar outras vidas no mundo. Espero um dia poder conhecê-las e ver um pouco do meu irmão nelas. Mas sabe o que é estranho?”, pergunta, intrigado. “Este ano foi a primeira vez que eu e ele tivemos um bolo de aniversário na vida. Parece que foi um aviso mesmo, uma despedida”, diz Damião, emocionado, e sai para se despedir do irmão.

O tempo é aliado, mas a distância geográfica, não

Após retirados, órgãos são colocados em solução para conservação (Fotos: Angela Peres/Secom)

Após retirados, órgãos são colocados em solução para conservação (Fotos: Angela Peres/Secom)

No começo da madrugada daquele 27 de setembro, dia Nacional do Doador de Órgão e dos santos Cosme e Damião, o cirurgião Tércio Genzini comandava a equipe de cerca de 15 pessoas para fazer a cirurgia de captação dos rins e fígado de um paciente com morte cerebral, vítima de acidente de moto. A equipe corria contra o tempo, pois o fígado deveria ser enviado para Brasília (obedecendo à lista do cadastro nacional) no último voo da madrugada dali a poucas horas, em tempo de chegar em bom estado de conservação.

No dia seguinte, duas equipes diferentes – uma coordenada pelo cirurgião Nilton Ghiotti e outra pelo cirurgião Tadeu Moura – realizaram as cirurgias dos dois pacientes que receberam os rins coletados na noite anterior. Dois dias depois, mais uma captação de rins de uma vítima de AVC com morte cerebral, cujo fígado foi enviado para Fortaleza em um voo fretado pelo governo do Ceará.

Órgãos colocados em solução para conservação (Fotos: Angela Peres/Secom)

Órgãos colocados em solução para conservação (Fotos: Angela Peres/Secom)

Aquela semana foi intensa para a equipe de transplante do HC, que ficou movimentado com a quantidade de doações e transplantes que realizara. Foram sete transplantes de rim e dois de córnea, mais um fígado foi enviado para Brasília com a ajuda da Força Aérea Brasileira (FAB) de Manaus (AM) e dois rins novamente para Fortaleza, porque não fora possível aproveitar no Acre.

Um dos transplantes realizados foi o chamado intervivos, quando o paciente recebe o órgão de um doador vivo compatível, no caso, um rapaz de 25 anos que recebera um rim do pai.

Eles são do interior de Rondônia e vieram realizar a cirurgia no Acre, pois naquele Estado não se faz transplante. “Meu médico me chamou de ‘doido’ quando eu disse que viria para cá, mas era minha alternativa. Apostei e não me arrependo, fui muito bem recebido e bem tratado, não tenho do que falar, o transplante foi um sucesso. Meu pai já voltou para casa e em breve eu estarei lá”, diz Robson de Matos Rocha, que há três anos dependia de hemodiálise.

“A doação é o mais importante em todo esse processo”. Tércio Genzini (Fotos: Angela Peres/Secom)

“A doação é o mais importante em todo esse processo”. Tércio Genzini (Fotos: Angela Peres/Secom)

Segundo ele, desde que começou a fazer a hemodiálise sua vida mudou bastante, por ser desgastante e sofrido. O universitário de matemática fazia o procedimento três vezes por semana, conciliando com os estudos e o trabalho em um supermercado de Ariquemes, cidade onde mora. “Eu fiz de tudo para não fraquejar porque a gente fica muito debilitado depois de uma hemodiálise, mal você se recupera e já é hora de fazer outra sessão”, conta.

Um procedimento de hemodiálise demora mais de três horas, e se o estado do paciente for muito grave, ele pode acabar não resistindo. “Muitas vezes a gente dorme, e já aconteceu de eu acordar e ter a notícia do falecimento do companheiro que estava na cadeira ao lado antes de eu dormir. É triste demais. Felizmente tive sorte porque toda a minha família se dispôs a doar. Mesmo assim, acho que é um ato de muita coragem. Certamente serei um doador porque sei o que passei”, relata Robson, emocionado e aliviado.

Outra paciente que conseguiu fazer o transplante naquela semana foi Sirlene da Silva Chaves, de 38 anos e que há mais de um mês comemora a vida nova. Sirlene é um caso de sorte – enquanto muitos pacientes aguardam anos por um rim, ela conseguiu fazer seu transplante cerca de um ano e meio após começar a hemodiálise e ter o diagnóstico de que precisaria de um novo rim por tratar-se de um caso crônico. Duas irmãs de Sirlene se dispuseram a doar, mas não foi possível e ela teve que entrar na fila do cadastro.

Integrantes da equipe de transplantes saem com o fígado retirado que será enviado para Brasília em alguns minutos no último voo da noite (Fotos: Angela Peres/Secom)

Integrantes da equipe de transplantes saem com o fígado retirado que será enviado para Brasília em alguns minutos no último voo da noite (Fotos: Angela Peres/Secom)

“Quando eu soube que tinha um doador eu chorava e ria ao mesmo tempo. Estava feliz, mas triste por saber que uma vida se fora. É um ato de amor da família que permite a doação do órgão de um parente. Eu falo sempre sobre a doação porque muda a vida da gente, você ganha uma chance nova de viver, por isso espero poder fazer mais pelo próximo e ser uma pessoa cada vez melhor”, diz, emocionada.

“Há muitos anos, antes de ter esse problema, eu renovei minha carteira de identidade e coloquei lá que sou doadora de órgãos, e agora vou defender essa causa ainda mais. Só quem faz hemodiálise sabe o sofrimento que é o tratamento. Eu saía de lá com a sensação de estar oca por dentro, é horrível. Agradeço muito àquela equipe que fez minha cirurgia porque hoje posso comemorar com minha família a minha nova vida”, anima-se Sirlene.

A união pela doação

Dados da Associação dos Pacientes Renais Crônicos e Transplantados do Acre diz que há 240 pessoas fazendo hemodiálise no HC, uma delas é a presidente da entidade, Berenice Sales, que faz o tratamento e espera por um rim há nove anos. A associação tem 86 pessoas cadastradas com a finalidade de encaminhar os pacientes para o INSS, marcar consultas, ajudar os que são carentes com doações diversas e lutar pelo direito deles ao tratamento e medicamentos quando acharem que não estão sendo cumpridos pelo Estado.

“A associação é uma parceira da Secretaria de Saúde e da Central de Transplantes. No dia do Doador de Órgãos, fizemos panfletagem no Hospital das Clínicas e nos sinais de trânsito, conversamos com as famílias dos falecidos para tentar sensibilizá-las para a doação. Temos que fazer uma campanha local maciça explicando o sofrimento que é uma hemodiálise e precisar de um rim e a necessidade da doação de órgãos, porque tem gente que tem parente precisando de doação e diz que não seria doador, acredita?”, diz Berenice, espantada.

Sirlene da Silva Chaves comemora o transplante realizado há cerca de um mês (Fotos: Angela Peres/Secom)

Sirlene da Silva Chaves comemora o transplante realizado há cerca de um mês (Fotos: Angela Peres/Secom)

O irmão dela também fazia hemodiálise e depois de esperar por 10 anos finalmente conseguiu fazer o transplante há 25 dias porque ninguém da família tem condições clínicas de doar. Berenice diz que a mãe também tinha insuficiência renal. No último exame que fez ainda não estava liberada para fazer a cirurgia, pois tem uma possibilidade grande de rejeição. “Torço para que esse dia chegue logo e eu também encontre um doador. Tento levar uma vida normal, faço caminhada e hidroginástica, mas quero ter minha saúde de volta, e isso só vai ser possível quando fizer o transplante”, lamenta.

“O mais importante em todo o processo é o ato de doar, de pensar na vida do outro quando a de um ente querido não tem mais jeito. Isso é o que vale a pena nesse trabalho”, diz o cirurgião Tércio Genzini, médico dos hospitais Beneficência Portuguesa e Bandeirantes de São Paulo, que desde 2009 dá consultoria em transplante no Acre.

Além do cirurgião Genzini e dos médicos de sua equipe Gustavo Fernandes e Eduardo Anastácio, compõem a equipe de transplantes do Acre os cirurgiões do HC de Rio Branco Tadeu Moura, Nilton Ghiotti e Yotaro Suzuki, as infectologistas Cirley Lobato, Daniele Gonçalves e Judith Weirich e a nefrologista da coordenação de transplantes do HC Luciene Oliveira.

Robson de Matos Rocha veio de Rondônia fazer o transplante do rim doado pelo pai, já comemora a alta e não vê a hora de voltar para casa (Fotos: Angela Peres/Secom)

Robson de Matos Rocha veio de Rondônia fazer o transplante do rim doado pelo pai, já comemora a alta e não vê a hora de voltar para casa (Fotos: Angela Peres/Secom)

A Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos do Acre (Cncdo), a Organização à Procura de Órgãos (OPO) e o Serviço de Atendimento Especializado (SAE), todos centralizados no Hospital das Clínicas, dividem-se em todo o processo de identificação do paciente: entrevista familiar do possível doador, captação, transplante e envio do fígado para outros Estados ou mesmo dos rins e córnea quando no Estado não houver nenhum receptor compatível.

Em Rio Branco são realizados transplantes de rim e córnea e o Estado está se preparando para realizar também o de fígado, que deve acontecer até o fim do ano. “Talvez o Acre seja hoje o Estado do Norte mais preparado para realizar o transplante de fígado porque, sem dúvida, já o é em capacitação e nos cuidados pré e pós-operatório”, diz Genzini.

“O governo do Estado está investindo muito para a realização de transplantes. O Acre é uma referência na Região Norte e em breve vamos poder realizar também o transplante de fígado. Mas o fundamental é a doação de órgãos, sem esse ato solidário nenhuma tecnologia pode resolver”, diz a secretária de Saúde, Suely Melo.

“Com a morte do meu irmão parece que tiraram um pedaço de mim, mas sei que outras pessoas vão viver através dele”, diz Damião Barbosa minutos antes de visitar pela última vez o irmão Cosme, que dali a algumas horas terá os rins e fígado retirados para transplante em outras pessoas. Na foto com o tio Clodoaldo Pereira (Fotos: Angela Peres/Secom)

“Com a morte do meu irmão, parece que tiraram um pedaço de mim, mas sei que outras pessoas vão viver através dele”, diz Damião Barbosa minutos antes de visitar pela última vez o irmão Cosme, que dali a algumas horas terria os rins e fígado retirados para transplante em outras pessoas. Na foto com o tio Clodoaldo Pereira (Fotos: Angela Peres/Secom)

Desde 2006, quando os transplantes começaram a ser realizados no Acre, muitas vidas se salvaram porque outras deixaram em vida a vontade de doar seus órgãos ou porque a família, mesmo em um momento de dor extrema pela perda de um ente querido, conseguiu pensar na vida de outro, ainda que de um estranho.

Até outubro de 2012, já foram realizados 46 transplantes de rim (11 apenas este ano), e desde 2009 foram realizados 88 transplantes de córnea. Atualmente apenas dois pacientes esperam por uma córnea, há dois inscritos para o de rim e 17 suspensos por condições clínicas inadequadas. Outros pacientes estão sendo avaliados, mas nem todo paciente de hemodiálise tem indicação para transplante.

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