O melhor livro que li foi “John Lennon – A vida”, do jornalista britânico Philip Norman. Em mais de 800 páginas, a trajetória do ex-beatle é narrada, do nascimento até seu assassinato, de forma fidedigna à realidade. Foi tão conciso e profundo que Yoko Ono, que havia lido a obra toda antes e autorizado sua publicação, se retratou por considerá-la “cruel demais com John”, mas reconhecendo a veracidade de todas as informações.
A biografia narra a história de um adolescente revoltado e “sem causa”, que apesar de não ter tido contato com o pai, via a mãe com frequência e foi criado por uma tia rica, crescendo em um subúrbio chique, sem ter os problemas com a pobreza de seus futuros colegas de grupo Paul, George e Ringo.
No decorrer da trajetória, vemos que ele era um ladrãozinho costumaz, furtando objetos sempre que podia, dentre tantos outros defeitos, como seu hedonismo, egoísmo, hipocrisia, abandono da mulher e do primeiro filho, além de um episódio que pode ter ocasionado a morte do primeiro baixista dos Beatles, Stu Sutclife. John o espancou após um show em Hamburgo, sem motivo aparente, o que pode ter sido a causa das hemorragias que o levaram à morte.
Ele também fazia chacota de deficientes nos shows e uma série de outros acontecimentos reprováveis para uma grande estrela, mas confesso que, ao terminar o livro, passei a admirá-lo ainda mais. Consegui dar um significado melhor ao que sentia por ele e por suas músicas, que para mim são imbatíveis, ao ver seu lado humano.
Como eu e você, John Lennon, assim como o ex-futebolista Diego Armando Maradona – morto mês passado -, era falho, errava muito, paradoxal em muitos momentos, bem longe do exemplo de pessoas que supostamente deveriam ser, por conta do talento que tinham em suas áreas de atuação e pelo alcance que seus feitos poderiam impactar na vida de milhões de fãs pelo mundo, sobretudo dos mais jovens.
A minha admiração por Maradona foi construída ao longo dos anos, de forma lenta e gradual. Através da mídia, via nele um sujeito sempre marcado pelo abuso de drogas, o jeito caricato e os vexames em público que protagonizava, o que me afastava de conhecer de verdade as qualidades desse grande jogador de futebol. Eu acabava sempre “indo na onda” do que diziam sobre ele e o tinha como jogador supervalorizado, sem entender a devoção que alguns tinham por ele, sobretudo na Argentina, país em que ele tem até uma igreja própria, fundada em 1998.
Mas graças à internet (YouTube), pude ver seus lances magistrais com as camisas da Argentina e do Napoli, onde ele teve mais destaque e, ao menos em campo, ele havia me convencido de seu grande valor com a bola nos pés. Mesmo sendo um pouco acima do peso e baixinho, compensava suas limitações físicas com muita raça e doação extrema ao seu time, companheiros de clube e torcedores.
Quando ouvia falar que ele ganhou a Copa de 1986 sozinho, achava um absurdo, um ultraje com os outros jogadores argentinos, mas a afirmação é 100% verdadeira. Sem Diego Armando Maradona, a Argentina não chegaria nem próximo do título naquele ano, basta ver a trajetória dos hermanos na competição. O time era extremamente limitado em termos de elenco, mas Dieguito se doava tanto em campo que seu empenho acabava motivando os outros jogadores a acreditarem no impossível.
Mesmo dentro de campo, Maradona era capaz de mostrar seu instinto de herói às avessas: no mesmo jogo em que driblou meio time da Inglaterra, marcando um dos gols mais bonitos de todos os tempos, protagonizou o infame episódio da “mano de Dios”, em que anotou um tento com a mão.
Na Copa seguinte também contagiou os atletas, e até mesmo o povo italiano, os donos da casa, fazendo parte do estádio torcer para a Argentina ao invés da Itália, num confronto direto e decisivo entre as equipes. No mesmo torneio, colocou “água batizada” em garrafas e deu para atletas brasileiros tomarem durante o jogo contra o Brasil. O fato acabou contribuindo para a vitória da sua seleção sobre o Brasil, com gol de Caniggia e passe magistral de Maradona.
No Napoli, clube que mais se destacou futebolisticamente, ganhou dois campeonatos italianos e a Copa da Uefa, fora os jogos e lances inesquecíveis que protagonizou. Conseguiu transformar, literalmente, um time pequeno do sul da Itália em uma potência europeia dos anos 80, ajudando a gerar autoestima para o povo napolitano, que historicamente se sentia menosprezado pelas cidades do norte do país, como Turim e Milão, por terem a estigma de “sulistas caipiras”, enquanto o norte era mais desenvolvido e industrializado.
Em Nápoles é comum, até os dias de hoje, os habitantes locais terem uma foto de Maradona em suas casas e comércios, em retribuição ao legado que o atleta deixou na cidade. Mesmo lá na Itália, Maradona não deixou de ser controverso, se envolvendo com a máfia local e, segundo o próprio, ter o primeiro contato com drogas pesadas – fato que culminou com seu banimento por dopíng, em 1991.
Com esses exemplos, que nada mais são do que extratos para representar a vida deste grande atleta, afirmo que Maradona é, de longe, o maior jogador de futebol de todos os tempos. Veja bem, eu disse maior e não melhor. Pelé, Cristiano Ronaldo, Messi e Ronaldo Fenômeno, só pra citar alguns, estão à frente de D10s no que consiste ao futebol praticado em campo, e até mesmo em número de títulos.
Maradona supera a todos no conjunto da obra se considerarmos toda sua trajetória, dos primeiros passos no Argentino Jrs, nos anos 70, até sua aposentadoria no Boca, em 1997. O que ele fez em quase 10 anos de Napoli e em duas copas pela Argentina tem uma representação muito forte para esses torcedores e para o público que o acompanhou na época. Para resumir, foi uma verdadeira revolução, em que um único jogador conseguiu unir um país e uma cidade, ambos enfraquecidos (hermanos pela derrota na Guerra das Maldivas e napolitanos pelas disputas com o Norte), a voltarem a sorrir por meio do futebol. Isso é magia, algo que nem incontáveis títulos de Ligas dos Campeões podem superar.
Ao encerrar a carreira, D10s seguiu sendo polêmico. Por vezes, parecia pedante e bonachão; em outras, humilde e em defesa dos mais pobres. Defendia ditadores sanguinários, como Fidel Castro e Che Guevara abertamente, ficou internado em clínicas de reabilitação várias vezes, sofreu overdoses, teve vários filhos fora do casamento, se afastou das filhas…
Ele não era, nem de longe, um exemplo a ser seguido, mas no mundo moderno pós 1990, em que a informação circula de maneira cada vez mais rápida e descentralizada, Maradona se mantinha firme em suas convicções, sem jamais arredar o pé pra quem quer que seja. Suas virtudes e defeitos estavam todos lá para quem quisesse ver, de forma clara, diferente da maioria dos futebolistas de hoje, que só dão respostas vazias e com vistas grossas do assessor de imprensa.
Dieguito era único, um personagem incrível e que deve ser celebrado por todos os amantes do futebol, sem preconceitos baratos.
Vá em paz, D10s, obrigado por tudo!
Mauro Tavernard é jornalista da Secretaria de Estado de Comunicação