Por Milton Chamarelli Filho*
Nunca quis escrever um diário sobre a pandemia. Primeiro porque o gênero me parece um pouco maçante, segundo porque – e até por consequência – não haveria um distanciamento para que se refletisse sobre, pelo menos naquele momento em que muitos começaram a se dedicar ao trabalho home office. Ler diários também não foi minha opção, uma vez que nem todos os textos que leria talvez fossem como os relatos de Anne Frank.
Passado quase um ano desse flagelo – e não sei se alguém ainda está escrevendo diários – o que percebo pelas redes socias é que há dois grupos com comportamentos opostos: aqueles que ainda estão se protegendo e aqueles que simplesmente parecem ignorar a ação devastadora de um vírus que já matou mais de 260.000 brasileiros. Mas o que os caracteriza?
Disse Carlos Heitor Cony que a diferença entre o otimista e o pessimista é a de que o primeiro é mal informado. Talvez seja, talvez o pessimista seja como o rancoroso, que, além de ter uma visão negativa sobre os fatos, tem uma ou várias feridas na alma, e, por não cuidar delas, acaba por insultar tudo e todos. Isso se tornou muito sintomático nas redes sociais, ou quem sabe até já existisse e eu nunca houvera me dado conta de que o número de chibatadas não mata o cativo, mas sacia a raiva temporária e latente do seu algoz.
Pensando nesse tipo de comportamento, acho até – fazendo aqui uma digressão e aludindo a uma passagem bíblica – que aqueles que queriam apedrejar Maria Magdalena o faziam não pelos pecados que ela cometera mas pelo hábito ou prazer de querer atirar pedras.
Entretanto, ninguém age assim se antes não lhe for plantada a “sombra do mal”, a sobrepor-se sempre sobre o bem que pode existir em tudo, e o qual não se nota. É mais fácil conviver com o revés da dor do que extirpá-lo, diria algum psicólogo. Também, não se pode querer ser mais real do que a realeza; é enfadonho e, com o tempo, pela natureza extrema do ato e pela sua consequência moral, com a mudança de hábitos e costumes, vira-se motivo de chacota.
Talvez tenhamos nos tornado neuróticos demais, paranoicos demais – e muitas vezes queremos bancar uma de Deus – se é que Deus é realmente assim, como muitos pregam, um Deus de sofrimento e que impinge a dor a quem se desvia dos seus caminhos.
Eu sei, é um vírus, mas estamos ficamos doentes na alma, porque tirando (quiçá acrescentando, por um paradoxo) o instinto embrutecido, temos uma libido (uma energia psíquica, nos sentidos de Jung e Freud) que nos dispõe para o outro, para o social. Precisamos nos relacionar, respirar, falar com os vizinhos, com os parentes, com os amigos e até com que aquele que você acabou de conhecer na fila da lotérica. Estamos amordaçados por uma doença e por todas as recomendações que nos mantêm vivos na carne e mortos na alma. Porque eu não sou só um ser, eu sou para ser.
Qualquer artificialidade sobre a pele que não seja por ela absorvida se torna um estorvo. E é dessa forma que eu e muitos estamos sobre-vivendo, com todas essas “próteses” necessárias que nos protegem, uns dos outros. Espere um pouco. Respire fundo. A vacina vai chegar.
Por outro lado, o grupo dos “otimistas” está “curtindo a vida adoidado”, como se nada estivesse acontecendo, como se uma cidade inteira já não estivesse morta, como se a vida fosse uma leitura de Caras, diário de imagens efêmero.
Talvez precisem preservar muito o eros para (ou por) não enxergar o tânatos. Essa contradição é a mesma que vivenciamos quando lavamos as compras: estou sendo precavido demais, se esse vírus nem estiver aqui? Ou está? Mas será a mesma, também, que faz anunciar o número de mortes ao fim do Jornal Nacional e celebra a vigésima primeira reedição do reality show mais “badalado”? A leviandade não está apenas nos atos, mas na representação deles, naquilo que pode influenciar o influenciável e levá-lo a uma conduta irrefletida no menor “deslize” ideológico.
O certo é que falta aos “otimistas” não só empatia, falta-lhes sabedoria. No lugar de escrever, estão vivendo os seus diários, opção sempre mais “emocionante” para quem quer viver e correr perigo, como se nada estivesse acontecendo com o nosso ser-comum.
*Milton Chamarelli Filho é professor titular da Universidade Federal do Acre (Ufac) e doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo