De volta aos cachos, uma história de transição

O ano era 1973, em Marabá, uma cidade no interior do Pará. Uma menina de apenas 12 anos iniciou uma jornada de transformação em seus cabelos, quando seus cachinhos foram abruptamente desfeitos e aquelas ondinhas naturais passaram a ser apenas fios retos, sem aqueles movimentos únicos. Ela passou a ter o tipo de cabelo mais comum na época, totalmente liso.

Sempre que os cabelos iam crescendo, já era hora de voltar ao salão e refazer o alisamento na raiz, para manter o liso. E foi assim por mais 50 anos. Durante esse tempo, ela terminou os estudos, foi morar em São Paulo, trabalhou como professora, casou, voltou a sua cidade natal, teve 3 filhas, todas com cabelos cacheados. Sempre cuidou muito bem dos cachinhos de cada uma delas e, mesmo quando as filhas cresceram, nunca sugeriu alisamento, pelo contrário, sempre falava do quanto admirava aquele trio de cacheadas.

Eu era uma delas, a filha do meio. Lembro das viagens de férias para Belém, onde ficávamos na casa da minha tia. Lá, minha prima mais velha, que tinha os cabelos bem lisos e naturais, sempre dizia que queria ter meus cachinhos e brincava, perguntando se eu daria uns cachinhos pra ela. Quando voltamos pra casa, lembrei do que ela disse e, na inocência dos meus 5 anos, preparei um presente pra próxima viagem: peguei a tesoura nova do material escolar, cortei um cachinho e guardei na geladeira, para conservá-lo até as próximas férias.

Minha mãe encontrou aquele cabelinho bem guardado na geladeira e logo reconheceu de quem era o tal cachinho gelado. Ela me disse para eu cuidar bem dos meus cachinhos, que eram só meus e tão lindos que não deveriam ser cortados assim. Foi quando aprendi uma das lições mais importantes que uma mãe ensina à filha, sobre o amor próprio. Mesmo com pouca idade, já fui assimilando aquele ensinamento para a vida.

Adulta, fui embora de casa para estudar, depois casei e construí minha família em outro estado. Moro em Rio Branco, no Acre, onde minha mãe sempre vem me visitar. Este ano ela veio pela segunda vez em novembro e já estava em processo de transição capilar, para enfim voltar aos cabelos naturais. Logo que chegou, tratei de levá-la a um salão especializado em cabelos cacheados, para que pudesse continuar o processo.

Na terceira semana de tratamento de reconstrução dos fios, decidiu cortar as partes dos fios que estavam lisas, para assumir de vez os cachos. Minha mãe disse que, a cada corte daqueles fios lisos, ela se sentia mais leve. E completou dizendo: “Foi uma libertação, parece que tirei um peso de mim”. Quando fui buscá-la e conferi o novo visual, estava mesmo diferente, um semblante de alto astral e um sorriso encantador. Ela realmente transparecia leveza e a beleza era irrefutável.

Essa transição, que tive a chance de acompanhar de perto, foi muito marcante pra esta filha que cresceu ouvindo o quanto seus cachos eram bonitos, de uma mãe que não teve a mesma sorte de, em seu tempo, ter a chance de realmente ter escolhas adequadas. Transição capilar vai além do simples conceito de mudança, trata-se de autoconhecimento, aceitação e amor-próprio.

Annie Manuela é jornalista formada pela Universidade Federal do Acre (Ufac), pós-graduada em Comunicação e Política (Ufac), técnica em gestão pública, servidora pública há 16 anos no Acre. Atualmente trabalha na Secretaria de Estado de Comunicação (Secom), na Agência de Notícias do Acre, e também contribui com material jornalístico para as rádios Aldeia FM e Difusora Acreana AM

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