Corpo e poder

Sempre quis entender os sistemas econômicos como um sociólogo ou como um psicólogo. Mas confesso que estou tentando aprender na prática, pelo que vivo, vejo e ouço no dia a dia. Inclusive faço uma suposição, já, de chofre, de que muitas doenças que encontramos atualmente são desencadeadas a partir desses sistemas, como muitos preferem dizer. Por conta desses efeitos, o corpo torna-se a medida do que afeta e do que é afetado nas sociedades modernas.

A título de exemplo, penso que uma paranoia pode surgir nos governos autoritários quando o poder passa a ser tão presente em todos os espaços que faz com que se imagine que ele possa estar em algum lugar, quando de fato não está. De outra forma, outros sintomas também podem decorrer de outros regimes, como nas democracias, em que formas dissimuladas de poder, as microfísicas (Foucault), podem insuflar a neurose a qualquer instante.

Por exemplo, a compulsão generalizada de obtenção de bens materiais é alimentada, nos governos considerados “democráticos”, pela vontade do “ter”  incessante que não se esgota na última versão daquele eletrônico que se almeja possuir, mas quando se o tem, descarta-se. Essa cantilena tem como consequência o fato atual de não se conseguir ficar em casa em quarentena, uma vez que os imperativos comerciais se tornam mais essenciais do que a vida, a vida do corpo, paradoxalmente vital e abjeto, como os invólucros de fast-food.

Onde começa e termina o corpo? Talvez essa seja a questão que devamos colocar por ora.

O corpo, a partir da introdução do capitalismo mercantil, tornou-se um objeto de reificação, e assim, pôde-se dizer “eu tenho um corpo”, “eu possuo um corpo”.  À medida que se tem o domínio de novas regiões, antes povoadas pelo exotismo do imaginário e por isso mesmo fonte de toda especulação mercadológica, tem-se também um corpo de poder, o corpo político, que se coloca como limite para aqueles que podem estar “protegidos” ou não pelo Estado, como em Hobbes.

Não por acaso, no início já do Renascimento, as nações colonizadoras da Europa começam a içar as suas velas e a conquistar novos espaços. Antes, o corpo medievo, lugar da passagem do sagrado, do palimpsesto, cedera lugar ao texto uno e único das nações que também começam a surgir. As línguas que começam a se constituir e a se destituir dos vernáculos, e as ideologias que começam a se concretizar.

O fato é que essas novas “posses territoriais” são proporcionais à tomada de uma consciência de um corpo e estão, por assim dizer, na instância do inconsciente. De fato, tudo que se pensa ser é tudo o que se adquiriu, ainda que seja por uma jurisdição umbrática.

Tem-se despeito sentimental das coisas porque elas passam a “fazer parte” do corpo: seja esse corpo a consciência de uma materialidade física, seja uma dimensão além de você (uma extensão de um sentido; as almas de um Novo Mundo), seja a posse de um território.

Conscientemente, por outro lado, criam-se os limites, ocupam-se espaços além daqueles que só um corpo pode ocupar. Muda-se a instância do eu sou para o eu estou. E estar é estar em um lugar onde outros corpos, diferentes do meu, são. Essa expansão territorial foi descrita pelos impérios espanhol e britânico como os lugares onde “o sol nunca se punha”, dada a conquista de terras e culturas das quais se apossaram e que também pilharam, talvez pela mesma dinâmica antagônica que fez e faz dos corpos indispensáveis e desprezíveis.

O poder tentacular do corpo de poder passa a existir pelo panóptico de Benthan, ainda hoje utilizado em penitenciárias. Esse elemento arquitetônico, ao permitir ver tudo, pan-óptico, somente através de um homem, insufla o medo naqueles que estão sendo vigiados. Pelo seu poder de alcance, esse modelo de vigilância e controle (Foucault e Deleuze) atravessa todo século XX e estende-se a todos os espaços na atualidade. Caímos na toca de Alice e nesse novo mundo de Truman somos vigiados pelo Grande Irmão.

O Estado precisa legitimar a sua presença ao manter alguns corpos marginais e reclusos, indispensáveis que estejam nessa condição, condição sem a qual o Estado não faria nenhum sentido. A ambiguidade dos estados modernos é essa: proteger e punir (Vigiar e Punir, em Foucault) e é sob essa custódia de poder que se pode abonar o ímpeto “benevolente” e, ao mesmo tempo, belicista.

A posse de saber e consequentemente de poder permite a introjeção e a repetição de valores da lógica perversa do Estado na fala das pessoas.  Foi o que aconteceu no Rio de Janeiro quando um casal foi interpelado por não respeitar as regras de distanciamento social durante a pandemia. O fiscal da prefeitura chama o homem de “cidadão” e a mulher, antes de o agente municipal continuar a sua fala, retruca: “Cidadão, não. Engenheiro civil, formado. Melhor do que você.”  Quantas falas e vozes históricas ou pessoais não podem ser ouvidas aqui, com esse mesmo teor preconceituoso? “Você sabe com quem está falando?”  É o corpo que incorpora a fala do Estado e a dissemina como se fosse ele detentor de todo saber e de todo poder.

Ainda se está por escrever uma história do corpo e de sua dominação, de como ele foi domesticado e adestrado, até a sua total inclusão no mundo dos objetos. Ele precisa estar coberto, deve expiar pela culpa de sua mal separada parte, a mente, deve flagelar-se por ser a fonte do pecado e deve estar preparado para todos os recortes culturais, como aqueles que o colocam no cárcere ou na moldura da cadeira escolar.

Pode-se dizer que o corpo hoje apenas está, não mais é; fato exemplarmente exemplificado em The Wall, de Pink Floyd.  A propósito, em Another brick in the wall, pode-se “ler” tijolos são objetos produzidos em grande escala, retilíneos, “quadrados”, empilhados, que, em forma de muro ou parede, impedem toda liberdade.

Paradoxalmente, estar é sempre aquela instância dinâmica em que tudo pode acontecer porque se vê as fronteiras abaladas, movediças, remotas… Por isso é necessário cercar o corpo todo tempo, mas, pela sua maleabilidade, “deve-se” deixar um espaço de exultação momentânea e cronometrada: o Carnaval ou carnavalizações das insanidades e das marginalidades periféricas que não se rendem à autoridade.

Talvez o superego aí se instaure para domar tudo aquilo que ultrapassa as demarcações do ser caminho para o ser fim: “O mal estar na civilização”, como o título e teor da obra seminal de Sigmund Freud. E é aqui que entram os sistemas econômicos e também os religiosos porque eles colonizaram nossos imaginários com todas as suas ambições de nos tornarem – do corpo que somos ao corpo que temos – um desejo (in)satisfeito, uma castração e uma doença de não ser.

Milton Chamarelli Filho é professor titular da Universidade Federal do Acre (Ufac) e doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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