Uma das maiores referências na preservação dos direitos indígenas, o sertanista e indigenista José Carlos Meirelles concedeu entrevista ao programa “Suas Histórias, Nossa Identidade”, da TV Aldeia, da qual foi publicada a primeira parte na quarta feira, 19, Dia do Índio, tratando especificamente dos grupos isolados. Nesta segunda parte, o experiente indigenista, que vive há 40 anos no Acre, fala da história e conquistas dos 16 grupos que vivem no estado em 36 aldeias e o quanto esses povos avançaram e avançam como parceiros da sustentabilidade acreana.
O senhor pode falar sobre a evolução dos povos indígenas no Acre?
Hoje, depois de um tempo passado, é fácil a gente analisar e descobrir algumas coisas. Aqui no Acre nunca houve serviço de índio, vamos dizer assim. O SPI [Serviço de Proteção aos Índios] não chegou aqui nesta região do Acre. Então, aos trancos e barranco, eles foram mortos, contatados, pegados a laço, enfim. Eles sobreviveram a empresa seringalista, a duras penas. Aí a Funai chega [1976], chega também o CIMI [Conselho Indigenista Missionário], foi uma época de feliz coincidência. Eles passaram a contar com a Prelazia de Rio Branco com Dom Moacyr Grechi, o jornal alternativo “Varadouro”, o CIMI, os sindicatos de trabalhadores rurais [8], o pessoal da Funai, e começaram a descobrir que tinham direitos, inclusive à terra. A vantagem dos índios desta região é que, como nunca houve serviço de índio aqui, nunca houve paternalismo exagerado. O índio, para comprar uma camisa, trabalhava a semana toda no cabo de um terçado na Fazenda Califórnia. Quando descobriram que tinham direitos e podiam reivindicá-los, eles se organizaram rapidamente.
O que aconteceu? Os índios estavam dispersos nos seringais, cortavam seringa ou trabalhavam como peão. A partir do momento em que você dispersa um povo, você mata a cultura. O índio só consegue ter sua cultura se estiver junto. Eles se agruparam, se reorganizaram e foram em busca de seus direitos.
Nós estamos atualmente, no Acre, com 98% das terras indígenas praticamente regularizadas. Foi o processo de regularização fundiária, na questão indígena, mais rápida do que se tem notícia na história do indigenismo. Isso, por conta, claro, muito mais dos índios e por conta de pessoas que só fizeram dar um rumo. Por isso a coisa andou rápido. Hoje, os índios mesmos falam que estão no tempo da cultura. Estão se reinventando culturalmente e é muito melhor fazer isso do que derrubar madeira e vender.
Eu sou otimista. Apesar de tudo o que está acontecendo no país, que é um pouco triste. Eu queria lembrar, que faz muito tempo que trabalho com os índios. Trabalhei no regime militar na Funai, que era só coronel e general, mas eu nunca vi uma época tão escura e negra de perda de direitos, de tudo direcionado para retirar direitos das minorias, inclusive dos índios neste pais. Falo da área ambiental, da área indígena, da área quilombola, ou seja, das minorias aqui no Brasil que estão passando por um processo muito difícil. Mas eu acredito nos índios. Eles vão superar isso.
Você pode fazer uma diferenciação dos grupos indígenas do Acre e de outras regiões?
Eu acho que os índios do Acre hoje são os que estão em melhor situação. Por vários motivos: você tem uma política aqui no Acre de preservação de floresta, as terras indígenas estão preservadas e as áreas, demarcadas. Nesses últimos 20 anos, os índios têm diálogo direto com as instituições do governo, qualquer índio que chega aqui em Rio Branco vai falar direto com o governador. Isso é uma exceção. Não existe isso em nenhum outro estado do Brasil. Em Rondônia, se você disser que trabalha com índio e for a qualquer repartição pública, passa um mês na chuva lá fora e não te deixam nem entrar. Por conta de tudo isso, eu acho que hoje indígenas acreanos estão bem melhor .
Eu estive em uma reunião da assessoria indígena dos índios do Mato Grosso que veio aqui ver a experiência dos índios do Acre na questão de pagamento por serviços ambientais, no que eles estão muito avançados. Queriam saber como faziam para chegar a esse ponto. Ações que foram absorvidas pela Funai, como o Plano Nacional de Gestão de Territórios Indígenas, começaram aqui no Acre. Então, em relação ao Brasil todo, os índios do Acre não têm termo de comparação, eles já estão bem na frente. Eu espero que continue assim, servindo como exemplo.
Você é de fora, morou em vários estados, já morou no mato e o pessoal de fora tem certo preconceito com os acreanos. Na sua opinião, bem sincera e bem humorada, o acreano tem algo de índio?
Para começar, a família acreana o que é? É um seringueiro que veio lá do Nordeste e casou com quem? Não tinha mulher aqui, só vinha homem. Casou com uma índia. Então, toda família acreana, a bisavó é índia, com certeza. Com raríssimas exceções. Então, o jeito acreano de ser tem muito a ver com o jeito índio de ser. O acreano é afável, conversa com alguém e meia hora depois convida para dormir em sua casa. Isso é coisa de índio, você chega na casa dele, a primeira coisa que ele faz é atar uma rede para você dormir nela e te deixar à vontade. Esse jeito acreano de ser é uma herança boa dos índios. Eu sou de um estado que nunca gostou muito de índio que é São Paulo, mas sou acreano por opção, vim para o Acre, criei família aqui. Estou pensando em, no ano que vem, ir pra beira do mar para escrever minhas memórias ouvindo o barulho do mar, mas passei um bom tempo aqui, cheguei em 1976. Acho que esse jeito acreano de ser tem muito a ver com o jeito índio de ser, e como eu gosto dos índios, eu gosto também muito dos acreanos.
Confira AQUI a primeira parte da entrevista.