Brava Gente – Uma história singular, uma mulher plural

A pernambucana Maria José Bezerra nasceu no dia 25 de dezembro, no bairro Cordeiro, em Recife, como que anunciando: vim viver profundamente e trazer coisas boas ao mundo.

E como ninguém vive de verdade sem provar do sofrimento, cedo um conflito familiar marcou a criança. Torturava-a muito o comportamento do pai, hostil, machista e, em contraponto, o papel da mãe, submissa e sem perspectivas. Talvez por perceber, ainda que inconscientemente, que o anseio pela dignidade é próprio da alma humana e que é direito de todos, Maria José decidiu: “Não quero essa vida para mim”. Tinha seis anos de idade.

“O fraco não é para ser destruído, é para ser apoiado pelo mais forte”, diz Maria José (Angela Peres/Secom)

“O fraco não é para ser destruído, é para ser apoiado pelo mais forte”, diz Maria José (Angela Peres/Secom)

Resolveu, então, ser professora. Já amava os livros e o conhecimento. Entregou-se a eles. A mãe, embora não fosse letrada, desdobrou-se em sacrifícios pelo sonho da filha única e ganhou sua gratidão eterna: “O que eu sou, devo à Mamãe. Até ônibus ela lavou para me ajudar”, conta. E conseguiu graduar-se em História pela Universidade Federal de Pernambuco.

Foi lecionar na rede estadual de ensino e continuou seus estudos: veio o mestrado em História Social. Mas por que História? “Porque a História me encanta. Registra as histórias de todos, reflete sobre as experiências. A História é a valorização do ser humano”, discorre.

Em 1984, uma amiga lhe contou que a Ufac (Universidade Federal do Acre) abrira um concurso para professores de História Contemporânea. Ela se inscreveu, participou e passou em primeiro lugar. Sob os protestos da mãe, veio para Rio Branco. E encarou um grande desafio: mulher, negra, arrimo de família, sem marido, teve que desbravar seu espaço numa sociedade de moral provinciana, numa época em que as discriminações de todo tipo eram ainda maiores do que hoje. Pois a moça não se intimidou: lançou mão de sua competência e conquistou o que precisava no mundo acadêmico.

Ainda fez outro mestrado e, mais tarde, um doutorado na USP. Em 2004, foi personagem da campanha “O melhor do Brasil é o brasileiro”, do governo federal, da qual ficou conhecido o bordão: “Eu sou brasileiro e não desisto nunca”. No princípio, resistiu em participar, pois estava doente e com o corpo muito inchado, com suspeita de lúpus – que mais tarde não se confirmou. Depois, mudou de ideia: “Aceitei o convite quando percebi que meu testemunho poderia estimular o desenvolvimento de garotas negras vindas do mesmo lugar social que eu”.

Aqui teve sua filha Luanda, nome que, em uma de suas acepções, quer dizer “filha da África”. A moça tem 21 anos e estuda Direito. “É linda por dentro e por fora”, derrete-se a mãe.

Entremeado a tudo isso, Maria José atravessou problemas de saúde, que sempre lhe exigiu cuidados especiais: já enfrentou 25 cirurgias, sendo 18 de mama, para retirada de nódulos. Já perdeu a visão – e recuperou.

Seus 58 anos de vida são mesmo pontuados de intensidade: as situações extremas, a capacidade, as dores morais e físicas, os estudos, a organização, a força. As emoções também.

Ela conta que o ressentimento que nutria pelo pai a perseguiu por muito tempo. Anos depois de sua morte, ainda lhe feriam as atitudes dele, sobretudo aquelas apresentadas em sua infância e adolescência: as ausências prolongadas, a desvalorização do feminino, os recursos financeiros que ele lhe negligenciou. O tormento foi tanto que acabou compreendendo que, para ser livre, precisaria perdoá-lo. Com a coragem de sempre, mergulhou na própria escuridão e foi buscar – criar – o perdão dentro de si. “Custou muito, sofri muito, chorei muito, mas consegui”, conta. Como? “Em um dado momento, percebi que ele tinha qualidades também”, dá a dica.

Além de lhe pacificar o coração, o reconhecimento às virtudes do pai ofereceu alívio aos problemas de saúde.

A partir da riquíssima experiência pessoal, Maria José desenvolveu uma habilidade ainda maior de entender o drama humano. Em especial, no que diz respeito à necessidade de se desenvolver a tolerância e a solidariedade para sobreviver.

“A História humana é um pequeno capítulo da História da natureza. O fim do mundo é o que estamos fazendo uns com os outros e alguns com a natureza. O século XXI nos coloca a questão: ou aprendemos a nos respeitar e a cooperar, ou vamos sucumbir”, analisa a professora.

Com seu olhar que já viu tanto e continua transbordando afeto, ela demonstra que não perdeu a esperança: “a evolução das espécies nos torna seres capazes de altruísmo”, ensina.

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