Na casa ampla e ventilada da escritora Robélia Fernandes de Souza em Rio Branco, cinco felinos circulam e saltam sem cerimônia em seu colo, sempre pronto a acolhê-los.
Desde a infância, já criou macacos, galinhas, cachorros… Pássaros não, que não tolera aprisionamento. “Gosto muito de animais, eles me entendem. Talvez precisem de mim, mas eu preciso mais deles”, diz. Os vizinhos devem saber disso: sempre deixam mais um filhote em sua porta. A gata Caçarola, inquilina antiga, além de companheira é sua narratária, ou seja, aquela figura literária para quem o narrador conta um fato.
Certamente um elemento perfeito para compor com a verve contemplativa da literatura robeliana: a vida observada de sua janela, de sua cidade, a partir de sua maturidade. Além de seu universo interior, a natureza, as relações sociais e a história acreana são as fontes de inspiração mais frequentes.
Escreve desde sempre? Não. Foi apenas quando se aproximava da casa dos 30 anos que Robélia, então taquígrafa, casada e já mãe de cinco filhos, iniciou o curso de Letras na Universidade Federal do Acre (Ufac). “Fazer faculdade foi uma luz na minha vida. Comecei a dar aulas, melhorou minha situação financeira, minha compreensão de vida e formação profissional”, relata. A partir daí é que se tornou a “professora Robélia”, figura conhecida no Acre e que, durante dez anos, foi também membro do Conselho Estadual de Educação.
A leitura como parte do cotidiano de docente em língua portuguesa e literatura a incentivou nos primeiros escritos. Eram poemas. Entre suas publicações, em 1992 surgiu “Asa de vida” (poesia), depois (1996) “Conversa afiada” (contos) e “Boquinha da noite” (2003), de folclore infantil, muito procurado até hoje e, infelizmente, esgotado. Ainda houve “Converso novamente” (poesia), “Verdes anos” (contos) e “Contos esparsos”. Pronto, na gaveta, há o romance “Memorial dos Enredos”.
Enfim, o talento escondido se revelou. E surgiu uma escritora notável. Sua prosa é elegante. Ritmada. Enxuta. Exata. Atenta e sensível. A ver:
“Afasta-se com cuidado mesmo sabendo que aqueles não acordariam. Têm o sono pesado das comilanças, da ociosidade, da despreocupação. Sono leve tem a mãe, sobressaltada, a qualquer chuva a água invadindo o barraco, a qualquer hora, uma bala perdida procurando sangue.”
Nessas três frases, a escritora é capaz de produzir um pequeno tratado poético sobre a luta de classes. Contrapõe, com facilidade, a concentração de renda à mágoa dos oprimidos. Trata-se de um trecho do conto “Desta vez, a última”, pelo qual recebeu, em 2008, o prêmio nacional “Talentos da Maturidade”, promovido pelo Banco Real.
“Esse reconhecimento fora do estado foi muito significativo para mim, porque não fui avaliada por pessoas que me conhecem e correriam o risco de serem benevolentes comigo. Meu conto foi apreciado por um júri que não tinha referências anteriores do meu trabalho e mesmo assim lhe deu valor”, percebe, satisfeita, a professora Robélia.
E, sim, os conterrâneos a prestigiam. É membro da Academia Acreana de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Acre. Em 2007 recebeu o título de Cidadã Riobranquense e, em 2008, de Cidadã Acreana. Em 2010 recebeu a Comenda Volta da Empreza, da Prefeitura de Rio Branco.
Aos 75 anos, Robélia Fernandes considera que sua literatura seria mais rica se ela tivesse mais oportunidades de viajar: “Falo só da minha taba”, quase lamenta. Só, dona Robélia?
O Acre, o Brasil e toda a civilização humana devem gratidão a quem, como ensinou o escritor russo Liev Tolstoi, sabe cantar a sua aldeia e ser universal.
{xtypo_rounded2}
Links relacionados:
Veja aqui um conto inédito de Robélia Fernandes
{/xtypo_rounded2}