Neste mundo nada se desperdiça. Mas trilhar um caminho de escuridão para que serve?
Serve para encontrar a saída. Para descobrir o caminho das pedras e depois se tornar guia de outros que desejem andar no claro.
É esse o ofício de Renato Oliveira Souza, 35 anos, educador de alcoólicos e dependentes químicos em recuperação, em Rio Branco. Ele recorda sua adolescência, quando, gradativamente, começou a usar álcool, cigarro, pasta-base (feita com a sobra do refinamento da cocaína, misturada com ácido e água) e maconha.
Logo a rua passou a ser seu paradeiro preferencial. O rapaz aparecia em casa eventualmente, só para tomar banho. A mãe e as irmãs, cada vez mais preocupadas, apenas recebiam notícias de que ele estava caído ali, jogado acolá.
E assim foram se passando os anos, com Renato cada vez mais excluído do convívio social – e de si próprio. “Eu não enxergava um palmo além do meu nariz, não tinha perspectiva de nada, não via um futuro para mim”, conta.
Às vezes, tinha lapsos de percepção e desconfiava que tivesse ido longe demais. Como quando viu que a mãe de um amigo de infância o olhou com horror, de longe, e desviou o caminho para não se aproximar dele. “Aquilo me perturbou. Mesmo no meio da minha confusão, entendi que alguma coisa estava muito errada comigo”, lembra.
Ainda, Renato protagonizou uma agressão pública e ficou foragido da polícia durante alguns meses. Relata que, escondido, sentia-se muito mal, e, paranoico, imaginava perseguições e tinha pesadelos com viaturas policiais indo atrás dele.
Até que não suportou mais a pressão e, acompanhado de um advogado, apresentou-se à polícia. A pessoa agredida não respondeu à intimação de comparecer à delegacia e o inquérito foi arquivado.
Em 2001, aos 24 anos, quando esboçou algum desejo de ajuda, sua mãe imediatamente providenciou-lhe uma internação na Associação Arco-Íris, que atua na recuperação de dependentes químicos e é coordenada pela Diocese de Rio Branco. Foram dez meses de tratamento rigoroso. “Sofri muito, trabalhei duro, mas também refleti bastante sobre a minha vida”, relata Renato.
Concluiu o tratamento com sucesso e saiu de lá, retomando o ensino fundamental e médio por meio do EJA (educação de jovens e adultos). Também passou a frequentar um grupo de Alcoólicos Anônimos, a manter uma prática espiritual e iniciou um curso de mecânica de motos no Senai. “Nessa época eu estava começando a sentir o sabor da sobriedade”, reflete.
Entretanto, a rotina de sua nova vida lhe exigia muita força de vontade. De manhã saía a pé da Vila Ivonete, ia até a Cadeia Velha fazer o curso e voltava para casa. À tarde, também a pé, ia para um tratamento dentário no São Francisco e voltava. “A sola do meu sapato mocassim até entortou de tanto que eu andei”, relembra, rindo.
Trabalhou como mecânico, depois como responsável pelo almoxarifado de uma construtora e pouco a pouco foi se reinserindo socialmente. Também foi convidado e aceitou atuar como monitor na Associação Arco-Íris.
Hoje, Renato trabalha na Unidade de Acolhimento Paolo Pera, entidade ligada ao Centro de Atenção Psicossocial (Caps) que dá tratamento a pessoas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas.
“O trabalho do educador é estar próximo, presente às atividades dos clientes da casa e atento às suas oscilações de humor, reações e comportamentos”, explica Renato. Submeter-se a normas, adquirir novos hábitos, utilizar linguagem apropriada para o convívio e para o mercado de trabalho, manter a organização e cuidar da higiene pessoal são alguns dos principais aspectos abordados no tratamento.
E, felizmente, esse compartilhamento de conhecimento é duplamente benéfico. O educador aponta o benefício moral que recebe em decorrência de sua atividade: “Quando ajudo essas pessoas, eu me ajudo, porque refaço o meu trajeto”.
Além disso, Renato chama a atenção para um ponto importante: “Quem está em recuperação não pode olhar os números [o baixo índice de recuperados] porque desanima. Acontece que a intensidade de uma única recuperação que ocorra é muito impactante e não dá pra ficar indiferente”, pondera.
É verdade. Ele próprio é um exemplo disso. Há 12 anos sóbrio, faz uma declaração admirável: “Hoje parece que nunca tive compulsão por bebida, simplesmente não me atrai mais.”
Casado há quase dois anos, mantém contato diário com a mãe, as irmãs e a filha Sabrina, de 15 anos. Às vezes encontra-se com o pai, com quem estabeleceu um bom relacionamento.
Prosseguindo nos estudos, Renato colou grau em Administração no último dia 6 de abril e não disfarça o orgulho pelo feito, sinalizado pelo anel de pedra azul no anular direito. Com razão: “Pra quem perambulava pela rua com um calçado diferente em cada pé, é uma grande vitória”.