“Violência é tudo aquilo que impede o ser humano de se realizar.”
Gandhi
Embora a história da civilização esteja tão intrinsecamente ligada à tomada de consciência em relação aos direitos humanos, seus fundamentos ainda são bastante incompreendidos.
Entretanto, sem a valorização desse princípio, a escravidão, por exemplo, continuaria em alta no mundo todo, mulheres e negros seguiriam sendo cidadãos de segunda classe, sem voz e sem voto, permaneceriam vigentes as 80 horas semanais de trabalho da época da Revolução Industrial e seria legítimo maltratar crianças e forçá-las a trabalhar, mesmo em serviços pesados.
E, embora tais ações soem afrontosas em nossos dias, há pouco tempo eram consideradas normais por nossos antepassados. Não fossem alguns indivíduos que tenham se atrevido a discordar desses procedimentos e combatê-los, ainda que sob risco de vida.
– Grande parte das pessoas pensa que os direitos humanos existem para defender bandido – diz Raimunda Bezerra da Silva, 60 anos, acreana de Brasileia, que passou mais da metade de sua vida a promover o bem-estar e a dignidade dos seus semelhantes.
Raimunda é uma das fundadoras e atual coordenadora do Centro de Defesa dos Direitos Humanos e Educação Popular do Acre (CDDHEP) – criado em 1979, na capital, com o nome de Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH) – e também coordenadora de Relações Internacionais do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), que ajudou a fundar em 1982.
Em reação à opressão política, nos anos 70 começou a participar de grupos de jovens da Igreja Católica e iniciou seu trabalho em comunidades de base. Acompanhou de perto o movimento dos seringueiros, movimentos sindicalistas e de associações de moradores. Também interagiu contra a violência policial que estava instalada no estado até meados dos anos 90 e que fez dezenas de vítimas.
Em sua folha corrida de serviços prestados ao Acre e à humanidade, constam os projetos “Criança e Adolescente: Viver sem Violência é um Direito”, visando à formação de conselheiros tutelares e lideranças comunitárias; “Direitos Humanos e Cidadania”, programa de formação, com duração de três anos, para lideranças comunitárias, e a oficina “Revigorando o Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres”. Também colaborou com a criação da “Capacitação de Educação em Direitos Humanos”, nos estados da Região Norte e participou do projeto “Mulheres da Paz”. Além disso, com participação ativa nas comunidades dos bairros Seis de Agosto, Aeroporto Velho e da Pista, implantou a Rádio Comunitária Gameleira, que se transformou em importante ferramenta de mobilização, educação, informação e interação da comunidade do Seis de Agosto, uma das mais tradicionais de Rio Branco.
Atualmente, a rotina do CDDHEP consiste em receber e orientar cidadãos em questões relacionadas à terra, moradia, crianças e violência de gênero, entre outras. Também o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (Provita) é gerenciado pelo CDDHEP no Acre.
A atuação de Raimunda tem sido pontuada de fatos relevantes. Mas, quando indagada sobre um momento marcante, ela fica muito séria, abaixa a cabeça e as lágrimas irrompem. Da garganta emergem as palavras, difíceis:
– Não houve nada como a morte do Chico.
Quase 24 anos depois, o fato ainda ressoa na emoção de Rai, que de novo visita o pesar e a profunda afeição e respeito pelo amigo Chico Mendes.
Fala do idealismo do líder popular, claramente disposto a viver e a morrer em defesa da floresta e dos seus moradores. Destaca-lhe a inteligência incomum e a capacidade de ouvir. E conta também de seu caráter afetivo: “brincava de cavalinho com os meus filhos, contava história de onça…”
Da época, lembra-se também do grau de politização que aquela população já alcançou: “Na floresta existia uma multidão organizada”.
Ela e o ex-marido, Paulo Klein, tiveram convivência intensa com Chico, acompanharam de perto as perseguições que ele sofreu e também se expuseram, pois o líder se hospedava na casa deles quando vinha a Rio Branco. De fato, dias depois do crime, entre outros sinais, foi encontrada no quintal do casal uma embalagem de cigarros da mesma marca que o assassino fumava, o que lhes levou a entender que a perseguição passara por ali.
Sobre o ocorrido, conclui, tristemente:
– É uma brutalidade imensa que alguém seja morto por suas ideias.
A trajetória de Raimunda lhe valeu, este ano, a indicação, junto a outros dois candidatos do Acre, ao “Prêmio Betinho – Atitude Cidadã”, lançado em agosto pelo Comitê de Entidades no Combate à Fome e pela Vida (COEP Nacional) e Rede Mobilizadores. A escolha está sendo feita por meio de votação, na internet.
Sobre a humanista, o jornalista Elson Martins, um dos fundadores do famoso jornal “Varadouro”, que circulou no estado no final dos anos 70 e início dos 80, afirma: “Conheço-a desde os anos 70, sempre é a mesma pessoa, coerente com os seus princípios, engajada no trabalho político e social e ligada às questões dos direitos humanos. Envolveu-se na luta dos seringueiros e também ajudou as famílias expulsas dos seringais que chegavam à cidade buscando um lugar ao sol. É serena, responsável e inteligente”.
Serenidade é mesmo um traço de sua personalidade. Rai pode até parecer um espírito tímido, com sua voz suave e calma, seus gestou delicados. Engano.
Dentro de Raimunda Bezerra reside a integridade, a coragem, a resistência e a maioridade daqueles que sabem o que fazem e por que fazem.