Há muitas décadas que Núbia Wanderley é quase um folclore em Tarauacá. Por diversos motivos e talentos.
Precoce, começou a lecionar aos 11 anos. E, na mocidade vivida nos anos 50, as amigas conheciam muito bem seu pendor literário. Quando queriam mandar versos aos namorados, a ela os encomendavam. E Núbia escrevia.
Ao longo da vida profissional, atuou como professora de Artes, Ciências, História e Religião. E é possível imaginá-la também participando de peças de teatro, saraus e jograis, líder que é em matéria de desinibição.
Por conta de suas paixões, escreveu inúmeros poemas de amor, que resultaram em seis livros de poesia, sendo cinco já publicados. Também escreveu a história de Tarauacá em versos, obra também inédita.
A mãe, Dona Walzira, também era poeta. Mas, quando a filha estava de casamento marcado, o conservadorismo moral pesou mais do que a arte e a genitora proferiu o conselho doloroso:
– Antes de se casar, pegue seu caderno de poesias e rasgue tudo.
A moça relutou, querendo preservar a própria obra, naturalmente. Levou o caderno para a casa nova e o escondeu. Mas um dia o marido o encontrou e pediu que Núbia lesse os poemas em voz alta. Ela procurava pular os mais comprometedores, mas ele percebia que ela tentava esconder algo e aí fazia questão de que justamente aqueles fossem lidos. Ao constatar o caráter apaixonado de cada texto, dizia que ela retirasse a folha correspondente e queimasse.
Um momento difícil. Afinal, o que pode ser mais doloroso para um autor do que ver a memória de suas primeiras dores, amores, confissões e declarações, tão dramaticamente vividas e tão afetuosamente registradas, assim destruídas para sempre por um motivo vil como o ciúme relacionado a alguém que ficou para trás?
Mas ela fez como ele “mandou” e aguentou o golpe, como tantas mulheres de sua geração, que suportaram, aliás, agressões bem piores. Mas, felizmente, não permitiu que seus olhos de poeta fossem dessensibilizados e deixou vir muitos outros rebentos literários.
E, por falar em rebentos, Núbia, que é separada, foi mãe de seis filhos, entre consanguíneos e adotados, exatamente como sonhava quando era criança: “Eu achava bonito a mesa cheia de crianças, a mãe fazendo o prato delas”, conta.
De fato, o espírito lúdico e o impulso vital de Núbia impressionam. Cuida das tarefas da casa sozinha, cozinha, e, como tantos concidadãos bem mais jovens, locomove-se pela cidade a bordo de sua bicicleta. Conta que tem torcida organizada na esquina de casa, o que a diverte muito. A meninada reunida costuma acenar para ela e gritar, quando passa:
– Vai, Barrichello! Vai, Barrichello!
Ativa, enquanto serve suco de cajarana para as visitas, que prepara com muita agilidade em sua cozinha ultraorganizada, fala sobre seu chão natal: “Amo Tarauacá, adoro a minha terra e não a troco pelo Corcovado nem Copacabana. Até porque nós temos Corcovado e Copacabana aqui também”, diz, toda contente ao brincar com as palavras.
Dona Núbia também é performática. Faz caras e bocas, pronuncia frases de efeito no meio da conversa, improvisa encenações, canta afinado, corre pela sala, faz graça, ri e se diverte.
Só isso? Não. Escreve poemas, declama, compõe músicas, canta, desenha. Fala muito corretamente, e, quando vê elogiado o ordenamento de sua casa, dispara, em pose e tom teatral: “Diga-se, de passagem, que estou sem empregada desde o ano passado”.
Sorri e seus olhos brilham, cheios de travessura. Pulsa arte e estrelismo: “Sou enxerida mesmo, gosto dessas coisas.” É assim a menina Núbia Wanderley da Silva Correa, 77 anos.
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O poema “Nossa casa” de Núbia Wanderley, publicado na coleção “Miscelânea – volume 3” transporta o leitor para seu tempo e espaço de menina. Um retrato de época em Tarauacá.
NOSSA CASA
Moramos, eu me lembro,
Numa casa avarandada,
Pequena, sem nenhum luxo,
Mas era lá que eu morava.
Eu era muito criança,
Mas me lembro muito bem.
Um dia, depois do almoço,
Na varanda apareceu
Saco, bagagem, gente nova.
Era o novo morador.
Nossa casa papai vendeu.
Eu trajava no momento
Um vestidinho vermelho
Aberto dos lados, recordo,
Deixando meu corpinho
Ao ver aquela gente chegar
Corri e me meti no quarto
Estava, pois, com vergonha
Do meu vestido avançado.
Uma preta velha
Que andava lá por casa,
Sentindo minha falta,
Foi ver onde eu estava.
Chorando emburrada,
Querendo mudar o vestido,
Ela chamou mamãe
E foi feito o meu pedido.
Enxuguei os olhos e saí,
Comecei a desmanchar
As casinhas de bonecas,
Pra tudo encaixotar.
Eram bruxas de pano
Que mamãe fazia para nós.
Inda me lembro de alguns nomes:
Matilde, Bertoldo, com carinho
E guardamos nas caixinhas.{/xtypo_rounded2}