No lugar onde moro
A floresta é preservada
Pena que é bem pequena
Pior se não fosse nada
Mas o pouco com Deus aumenta
E o muito sem Deus acaba
Na Rua do Coco, o portão se abre e o visitante adentra um universo particular e encantador. Um grande quintal cheio de árvores e de pássaros cantando. É permeado por um cheiro reconfortante de terra úmida, e o cacarejar das galinhas, espalhadas pelo terreiro, empresta ao espaço um tom de intimidade típico da vida doméstica do interior. Os donos da casa são gente simples e acolhedora. Por isso, quem chega tem vontade de ficar.
É a morada de Cícero Franca de Farias, artista popular acreano e autor dos versos ilustrados no início do texto. Ali vive com a mulher e parceira de trabalho, Rosa Nascimento, e os quatro filhos. O terreno abriga um galpão, um depósito e um estúdio, que é a sede da Associação Império Beija-Flor, onde ocorrem os ensaios das atividades artísticas da família e demais associados, entre parentes, amigos e vizinhos. O carro-chefe do grupo é o folguedo popular Jabuti-Bumbá, uma criação coletiva de Cícero e de seus irmãos, surgida em 2005.
O Jabuti é uma boa amostra da proposta de trabalho de Cícero. É resultado da mescla de diversas manifestações culturais, como baião, ciranda, frevo, maracatu, cordel, pastorinhas e outras. É brincadeira, dança, música, e, plasticamente, trata-se de um belo e colorido espetáculo. Os brincantes, como são chamados seus integrantes, executam passos percorrendo uma linha circular ou em cortejo. Maracás, zabumba, sanfona, pandeiro e percussão são os instrumentos utilizados no folguedo. Um dos temas predominantes do Jabuti-Bumbá é a defesa da floresta. Apesar de ser um grupo novo, já participou da minissérie Amazônia, da Rede Globo, e, a convite da Funarte, também da cerimônia de posse da presidente Dilma, no ano passado.
Mas há mais. Porque Cícero é multifacetado: artista plástico, desenhista, compositor, repentista, cordelista, ator, poeta, cantor, contador de histórias e algo mais – não por acaso, é filho de Deusa Farias, poeta, atriz e primeira mulher ourives do Acre. Identifica-se com o que diz respeito à arte popular e nutre por ela veneração. O poema abaixo, registrado em forma de literatura de cordel na publicação “Resgatando a tradição”, de sua autoria, expressa, de modo lúdico e breve, o conteúdo que muitos acadêmicos tentam buscar em suas longas teses.
A cultura é popular
A cultura é transparente
É tudo o que o povo faz
É tudo o que o povo sente
É a história de um povo
Que ao fazer fica contente
Cícero demonstra, pela arte, um apreço que beira a inocência, o que é uma sofisticação. Transparece nele um interesse sincero em resgatar, o tempo todo, o belo e o criativo. Esse toque de imaginação está presente em tudo o que faz: nas paredes de sua casa, todas transformadas em painéis de pintura da família, e também nos objetos de decoração, como a gravata trabalhada em purpurina, exposta na sala de estar, do figurino de um de seus personagens mais famosos, o Zé do Coco.
Há outro aspecto nobre na expressão de Cícero, que é a defesa da expressão da coletividade, traço muito raro num mundo que cultiva, cada vez mais, a vaidade e o egocentrismo. “Nunca me interessei em olhar meu lado individual. Sempre preferi apoiar os grupos como um todo”, conta.
A conversa com ele é entremeada de música, brincadeira, repentes, histórias e anedotas. Num momento lembra a infância e de repente, pergunta:
– Tu sabe por que tem tanta gente tonta por aí?
– Não – responde o interlocutor.
– Porque o mundo gira!
E assim ri e faz rir, mostrando que nada é tão sério assim.
Sim, no mundo de Cícero Franca tem muito humor. E religiosidade, e folclore, e fantasia, e ecologia… É bom estar atento dentro desse fantástico espaço. A sensação é de que, a qualquer momento, pode-se dar de cara com uma fada… Ou com o Mapinguari!
De qualquer forma, Cícero segue seu caminho, e só cuida de estar bem. É como ele defende:
Posso parecer um louco
Isso não ligo não
Mas os versos que eu faço
São feitos com emoção
E o lugar que tiro versos
É de dentro do coração