Boas lições na TV – artigo

Caco Barcellos e moradores de Porto Acre (Foto: internet)
Caco Barcellos e moradores de Porto Acre (Foto: internet)

Valeu a pena ver os aperreios em que se meteram o jornalista Caco Barcellos e sua equipe no meio dos alagados do rio Acre, no programa Profissão Repórter exibido esta semana na TV Globo. Eles literalmente enfiaram o pé na lama e andaram com água no pescoço.

Caco Barcellos é um jornalista experiente e já viveu muitas aventuras com seu trabalho, sempre de boa qualidade. Mas, desta vez, ele e seus repórteres trocaram lições com o tema e os personagens demonstrando coragem e bom humor na cobertura da alagação, ensinando bom jornalismo, mas também se surpreenderam e aprenderam uma lição: de como os alagados acreanos enfrentam a tragédia de forma solidária e divertida.

A equipe passou uma semana em Rio Branco, que viveu a maior enchente em 32 anos de sua história, e Boca do Acre, no sul do Amazonas, na confluência dos rios Acre e Purus. Na capital acreana o rio atingiu 18,40 metros, mais de quatro acima do índice de transbordamento, e na cidade amazonense, que todo ano alaga, também o rio passou das medidas tradicionais. Mas, tanto aqui como como lá, a população se superou com sua cultura de alagada.

Dava pra ver no semblante dos jornalistas um quê de espanto ao ver como as pessoas transformavam o trágico em tragicômico; e ao constatar o tamanho da solidariedade entre familiares e vizinhos com o envolvimento de policiais, agentes do corpo de bombeiros, técnicos e funcionários do governo – que decretou ponto facultativo durante uma semana para disponibilizá-los.

Com a câmera na mão, uma jovem repórter escolheu dormir nos altos de uma casa alagada do bairro Taquaril, o mais atingido, numa fila de redes armadas a um metro da água, na qual boiavam eletrodomésticos, camas e sofás misturados com produtos de mercearia da família. Ao amanhecer e saltar da rede, usando botas, com água na cintura, deparou-se com uma cobra jararaca que escapou roçando em seus pés. A repórter não titubeou: filmou a peçonhenta que se enfiava entre caixas de papelão.

Havia perigo por toda parte, como marginais se aproveitando das residências e casas de comércio abandonadas, rede elétrica, imóveis despencando e ratos, entre outros. A mesma repórter perguntou onde podia fazer xixi e um membro da família fez a sugestão ponderando, entretanto, que no caso do “número dois” era preciso improvisar.

Outro repórter que dormiu no chão num cubículo de lona do Parque de Exposições, um dos abrigos que acolheu cinco mil dos dez mil desabrigados (de mais de 50 bairros alagados na capital), revelou semblante cansado no dia seguinte, tinha os olhos meio arregalados, mas se rendeu à fé e resistência de dona Francisca, 55, no cubículo onde passou a noite junto aos 12 filhos dela, que, ao ser entrevistada, disse que sua prece a Deus era que lhe concedesse condições para comprar uma canoa com a qual pudesse contar em futuras alagações!

Dona Francisca aniversariou no abrigo, os filhos e amigos lhe fizeram uma festa, cantaram parabéns num ambiente quase lúgubre, tumultuado, aflitivo, e mesmo assim um dos filhos levantou-a nos braços, beijou-a, e todos aplaudiram numa felicidade verdadeira e rara, de sobrevivente com cultura amazônica.

Em Boca do Acre, sobretudo, a equipe de TV não teve como fugir da gandaia. Todos circulavam pela rua principal com água acima de cintura, grupos de rapazes e moças gritavam e gesticulavam como se estivessem comemorando alguma partida de futebol; canoas e voadeiras passavam tirando fina entre mulheres e crianças, enquanto moleques se divertiam procurando salvar gatos e cachorros acuados pelas águas.

A ponta de tristeza ficou por conta do criador Manuel, de 55 anos, pessoa estimada por todos na cidade, que conhecia Barcellos de outras alagações e faz agora o balanço de uma história triste: seu pequeno rebanho bovino se acabou, levado sucessivamente pelas enxurradas. Do razoável patrimônio que tinha, mal sobrou um dinheirinho para comprar outro pedaço de terra mais floresta adentro, onde, mais solitário que nunca, procura se conformar com um resto de teimosia com a qual mede forças com a natureza.

Alagações à parte, o encontro dos alagados da região com a equipe de TV resultou num bom exemplo do que a mídia nacional pode mostrar de verdadeiro e confiável para a construção de um novo, justo e solidário país.

Elson Martins é jornalista

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