Autismo: a luta contra o preconceito e a discriminação

Fotos: Marcos Vicentti

Arte: Brunno Damasceno

O transtorno do espectro autista (TEA) é um distúrbio do neurodesenvolvimento que pode causar dificuldades na comunicação falada e não verbal, além de prejudicar a interação social e causar padrões de comportamento repetitivos. Pode ser classificado como nível 1, 2 e 3 (leve, moderado e grave), sendo necessário diagnóstico para determinar o tratamento terapêutico de cada pessoa.

As causas concretas do autismo ainda são uma incógnita para a ciência. Porém, estudos apontam que uma série de fatores genéticos e ambientais, combinados, colaboram para o desenvolvimento do autismo, como a idade dos pais, uso de entorpecentes, doenças autoimunes, infecções, baixo peso ao nascer, hipertensão e obesidade da mãe, antes ou durante a gravidez.

No mundo, segundo estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU), existem mais de 70 milhões de pessoas com TEA. No Brasil, são dois milhões de portadores da síndrome. Já no Acre, o levantamento da Associação Família Azul (Afac) aponta a existência de 20 mil autistas. A incidência em meninos é quatro vezes maior em relação às meninas.

Esta reportagem especial da Agência de Notícias do Acre traz o relato de casos de discriminação e preconceito ainda sofridos pelos autistas. Além disso, apresenta o trabalho e a luta do Ministério Público do Acre para garantir o direito das pessoas com TEA.

“Diziam que ele era muito mimado”

Jamiles Ribeiro sentiu na pele o peso de ser mãe de um garoto autista. Antes do diagnóstico, o comportamento de João Kaleb de Oliveira era visto por muitos como o de uma criança mimada.

“O João chorava muito, não sabia aceitar um não, não interagia, não se comunicava e demorou a andar. As pessoas diziam que ele era muito mimado e eu sabia que isso não era verdade, porque a gente não criou ele dessa maneira. Toda vez que alguém falava aquilo, doía muito em mim”, lembra.

O diagnóstico de João Kaleb veio aos quatro anos de idade. Por não entender muito bem sobre o transtorno do filho, Jamiles relutou no começo e demorou alguns meses para aceitar a condição do menino.

E foi assim que aconteceu. Até então, João Kaleb não tinha nenhum acompanhamento especializado. Jamiles foi orientada a procurar o Centro Especializado em Reabilitação (CER), em Rio Branco.

Três vezes por semana, Jamiles e o filho, que moram no Bujari, percorrem cerca de 20 quilômetros até a unidade. O tratamento do garoto de oito anos de idade conta com atendimentos fonoaudiológicos e sessões de terapia ocupacional.

“Ele melhorou muito depois que começou a ser atendido aqui. O João era muito agressivo com o irmãozinho mais novo dele. Hoje não é mais. A fala dele e a interação com outras crianças também melhorou muito”, relata a mãe.

“Tive que trocar meu filho de escola porque ele estava incomodando”

Heloneida da Gama jamais esquecerá a situação vivenciada pelo filho autista em uma escola particular de Rio Branco. Na época, João Vítor tinha 7 anos e cursava a pré-escola I.

Ao ser aberta, a porta da sala de aula onde o garoto estudava fazia barulho e acabava assustando-o. Com audição bastante sensível, algo comum entre os portadores de TEA, João Vítor sempre chorava.

“Fui informada pela escola sobre o choro do meu filho e, quando soube do que se tratava, pedi para que consertassem a porta. Parecia algo simples, mas o meu pedido não foi atendido”, disse.

O choro de João Vítor passou a assustar um colega, que sentava ao lado dele. Certo dia, ao buscar o filho, Heloneida foi chamada pela direção do colégio para uma conversa não muito agradável.

“Eles começaram a perguntar como estava sendo o aprendizado do João. Diziam que o meu filho poderia estudar em lugar bem melhor. Achei a situação estranha, mas acabei relevando. Mesmo não querendo, porque gostava muito do colégio, acabei trocando ele de colégio. Pouco tempo depois soube de toda a verdade. O coleguinha que estava chorando era filho de uma pessoa importante”, relata.

Ministério Público na luta contra a discriminação e garantia dos direitos dos autistas

Com o crescimento no número de diagnósticos e ineficiência no atendimento digno às pessoas com autismo, diversos pais procuraram o Ministério Público do Acre para ter o direito dos filhos assegurado, principalmente no acesso à educação e saúde.

Diante do aumento de novas ações e sensibilizado com a causa, o órgão decidiu criar, em maio de 2022, do Grupo de Trabalho na Defesa dos Direitos das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista (GT-TEA).

A procuradora tem se empenhando, juntamente com sua equipe, no acompanhamento de diversos casos. Segundo Gilcely Evangelista, nenhum autista deve ser discriminado por sua condição. “Isso é inaceitável e o Ministério Público tem assegurado a missão constitucional de zelar e defender o direito dessas pessoas, que merecem uma vida digna”, afirma.

O principal objetivo da comissão é acompanhar, fiscalizar e implementar ações necessárias, visando à defesa e proteção dos direitos dos autistas, permanentemente, em todos os 22 municípios acreanos.

O GT-TEA conta com o apoio de equipes do Centro de Apoio Operacional de Defesa da Criança, Adolescente, Educação e Execução de Medidas Socioeducativas; do Centro de Apoio Operacional de Defesa da Saúde, Pessoa Idosa e Pessoa com Deficiência; do Núcleo de Apoio Técnico (NAT); do Núcleo de Apoio e Atendimento Psicossocial (Natera); do Núcleo de Apoio Técnico Especializado da Criança e Adolescente (Nateca); e do Centro de Atendimento à Vítima (CAV).

MP realizará primeiro censo do país para contabilizar população autista do Acre

Em 2023, o Ministério Público deverá fazer história na defesa das pessoas com autismo. Pela primeira vez no Brasil, um amplo levantamento será realizado em todas as cidades do estado, para saber o número atual da população com TEA.

A necessidade surgiu a partir da constatação do MPAC sobre a total ausência de dados sobre esse público. Apesar de ser uma comunidade expressiva, o poder público, até o momento, não possui estatísticas oficiais. A falta de números prejudica a implementação de importantes políticas públicas, principalmente no interior do estado.

“Esse levantamento será fundamental para implementarmos políticas públicas, além de trabalharmos na criação de uma rede de apoio, em que os conselhos municipais de educação e saúde possam lutar pelos direitos dos autistas”, afirmou a procuradora Gilcely Evangelista.

Lugar de autista é em todos os lugares

Outra ação desenvolvida pelo órgão foi o lançamento da campanha Lugar de autista é em todos os lugares – discriminação é crime, inclusão é o caminho. Além do GT-TEA, a iniciativa conta com a participação do Centro de Apoio Operacional de Defesa da Saúde, Pessoa Idosa e Pessoa com Deficiência.


Promover a conscientização e disseminar informações sobre os direitos das pessoas com transtorno do espectro autista com familiares e a sociedade é o grande desafio do Ministério Público acreano.

Para a presidente da Associação Família Azul, o MP é um importante aliado nessa luta pelo fim do preconceito e da discriminação. “O Ministério Público tem sido um grande parceiro dos autistas e já conseguimos avançar muito. Muitas das nossas conquistas se devem à atuação dessa instituição, que busca fazer justiça”, observa Heloneida.

O exemplo vem de casa

Bruna Sampaio sempre foi uma menina bastante calada e pouco interagia com outras pessoas, principalmente na infância. Mesmo apresentando sinais de uma pessoa com autismo, na época as informações eram escassas e os diagnósticos praticamente não existiam, assim como profissionais especializados.

O comportamento de Bruna era o gatilho para que outras crianças da escola em que ela estudava praticassem bullying, palavra de origem inglesa que corresponde a atos de humilhação, agressão e intimidação contra uma pessoa não aceita por determinado grupo.

“Já me empurraram da escada, esconderam meu material e tentaram me trancar no banheiro”, relembra. As discriminações a acompanharam até a fase adulta. “Passei por situações constrangedoras, praticadas por alguns colegas da faculdade, durante o meu estágio. O meu ex-chefe praticava condutas que poderiam ser enquadradas como assédio moral”, relata.

Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Acre (Ufac), Bruna fez história ao ser a primeira autista contratada pelo Ministério Público. Desde agosto, a profissional atua como assessora administrativa do Centro Operacional de Apoio de Defesa da Saúde, Pessoa Idosa e Pessoa com Deficiência, dando sua contribuição para que outras pessoas, assim como ela, tenham seus direitos resguardados.

A inserção de Bruna no mercado de trabalho não foi nada fácil. Ela concluiu a faculdade em abril de 2018, mas conquistou seu primeiro emprego mais de quatro ano depois. A advogada defende o fortalecimento de políticas públicas para que os autistas tenham mais oportunidades laborais.

“Eu costumo dizer que os autistas adultos são um grupo invisível dentro de um grupo já negligenciado. Muitas vezes, os direitos dos autistas são desrespeitados, e os autistas adultos não são nem lembrados. Precisamos mudar a atual realidade e trazer mais inclusão. Por isso, é primordial pensarmos na conscientização, na visibilidade e buscar, como sociedade, maiores e concretas medidas para inclusão de autistas adultos, e a inserção no mercado de trabalho é uma delas”, analisa.

A dedicação dela é reconhecida no ambiente de trabalho. De acordo com Iracema Moreno, assessora ministerial e colega de Bruna, a advogada tem feito a diferença na instituição. “A Bruna é uma menina muito esforçada em tudo que se propõe a fazer. Para nós, como equipe, tem sido um aprendizado constante ter a oportunidade de trabalhar com uma pessoa que tem TEA”, relata.

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