Febre alta, calafrios, dores e cansaço. Sintomas comuns a tantas doenças, mas que não enganam Paulo Cesar dos Santos Leite. Aos primeiros sinais no corpo, ele já sabe: ela chegou de novo. Com 41 anos, ele é figura conhecida do mosquito Anopheles, vetor da malária. O encontro entre os dois já rendeu 59 infecções, além das que ele não registrou de forma oficial.
Paulo César mora numa região endêmica da malária em Cruzeiro do Sul. Isso significa que, a qualquer momento, ele pode ser picado pelo mosquito transmissor e, novamente, adoecer. “Já aconteceu de estar sarando de uma malária e antes de terminar a medicação estar infectado com outro tipo. Eu já peguei quatro malárias no mesmo mês. Quando eu começo a ficar ruim já sei que peguei de novo. É horrível para um pai de família. Se eu não trabalhar, quem vai fazer o meu trabalho? Dentro da rede e com febre não tem como ir para o roçado”, disse.
Combater a malária na Amazônia, região que concentra mais de 90% dos casos da doença no Brasil, pode parecer entrar em luta perdida. Mas não é. Apesar das condições favoráveis ao mosquito, algumas medidas mostram que o esforço vale a pena.
Foi o que o Acre fez a partir de 2006, quando um surto de malária registrou 93.864 casos – 91% deles ocorreram nos municípios de Cruzeiro do Sul, Rodrigues Alves e Mâncio Lima, região endêmica por conta da quantidade de igarapés, rios e açudes que concentra.
“Os agentes de endemias que visitam casa por casa venceram a história da epidemia das comunidades em que todos os moradores pegavam a doença. Isso agora é página virada, é reconhecida internacionalmente, pois foi vencida com uma estratégia simples de muita união e esforço. Vejam como as coisas simples podem mudar a realidade ao nosso redor, os mosquiteiros impregnados são um exemplo disso”, disse o governador Tião Viana.
Nos últimos anos, o Acre vem conseguindo resultados satisfatórios nas ações de controle e combate à malária, fruto do trabalho conjunto dos governo federal, estadual, municipal e comunidade. Entre os anos de 2006 e 2007 houve 48% de redução. De 2007 para 2008, 47%. De 2010 para 2011 o número de casos foi 37,9% menor. E se compararmos os anos de 2006 (quando houve o surto de malária) com 2011, a redução dos casos da doença no Acre é de 75,6%.
“A malária é um desafio diário, porque a Amazônia favorece a proliferação do mosquito vetor. Ela é uma doença essencialmente rural, mas hoje a história da malária no Acre é outra”, disse a secretária Suely Melo.
O mosquito não poupa ninguém
Os sintomas da malária são febre alta, calafrios, dor de cabeça e no corpo, falta de apetite, pele amarelada e cansaço. Não foi muito difícil identificar a doença no pequeno Alan Silva, que pegou malária com apenas 24 dias de vida. Quando a mãe percebeu a recusa ao alimento, o choro constante e a febre, submeteu o pequeno ao exame feito pelos agentes de endemias e confirmou a suspeita. O recém-nascido tomou a medicação dissolvida na mamadeira e a mãe, Ana Paula da Silva, 23, seguiu à risca a recomendação médica. “Ele dorme protegido, mas, mesmo assim, foi picado. Eu passei a gravidez inteira com malária, mal acabava de curar uma e já estava doente de outra. Quando dá seis horas da tarde eu fecho as portas e coloco o bebê no cortinado [mosquiteiro impregnado], mas ninguém escapa. A minha outra filha também pegou, só uma está escapando até agora: a mais velha”, disse Ana Paula.
A arma secreta: mosquiteiros com inseticidas
Os mosquitos transmissores da malária encontraram resistência e barreiras físicas e químicas no Juruá, região endêmica. O governo não ficou de braços cruzados e, em parceria com o então senador Tião Viana, buscou armas novas contra o vetor. Nessa época foram distribuídos os primeiros sete mil mosquiteiros – uma tela colocada sobre camas ou redes que forma uma barreira de proteção e impede o contato do mosquito com as pessoas – impregnados com substancia inseticida.
“Foi feita uma experiência piloto com sete mil unidades dos mosquiteiros, que estavam em uso em outros países. Aqui no Acre a nossa estratégia foi acompanhar a distribuição, instalação e uso do mecanismo para garantir que ele seria empregado da forma correta e medir a aceitação do produto entre as famílias. Com o resultado positivo e muita campanha de conscientização, foram adquiridas mais 70 mil unidades”, conta Thayna de Souza, gerente de Endemias da Sesacre.
Osmir Pereira dos Santos, 62, conta que num único ano pegou a doença seis vezes e já acumula mais de 12 diagnósticos de malária. Os mosquiteiros, para ele, são bastante eficientes e faz questão de usar a proteção. Maria Pereira, sua mulher, tem o cuidado de preparar o mosquiteiro antes das 18 horas, para evitar que algum mosquito “fique dentro da tela quando baixar o cortinado”, explica.
O mosquiteiro impregnado com inseticida é uma das estratégias de combate à doença recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e vale para todas as áreas endêmicas da malária. As telas impregnadas com a substância inseticida repelem, imobilizam ou matam os mosquitos vetores que transmitem a malária quando pousam sobre ela. Para garantir o resultado esperado, a Secretaria de Saúde vai além de entregar o material a cada família: instala e orienta sobre o uso. Ele deve ser lavado a cada três meses para potencializar o efeito do produto.
Casos de malária reduzem 43% em 2011
Na guerra contra a malária, em curso desde 2006, a doença fechou o último ano com baixas. Em 2011 houve uma redução de 43% em relação a 2010 e foram registrados 9.543 casos a menos no ano passado.
Mas o combate não para e agentes de endemias estão em campo, munidos de formulários e lâminas para exames, e abastecidos com uma dose extra de boa vontade em continuar lutando contra o mosquito, conscientizando os moradores e cuidando das comunidades rurais e urbanas de áreas endêmicas. “O trabalho é intensificado durante o ano inteiro para manter a redução nos índices. Se parar, retrocede, e retroceder, jamais!”. A frase, de Simone Danilo da Silva, gerente de Endemias em Cruzeiro do Sul, revela a disposição de combater o mosquito e vencer essa guerra.
Os soldados dessa guerra saem a campo com objetivos a serem cumpridos. Cada equipe, formada por dois agentes, visita entre 25 e 30 casas por dia na zona rural ou entre 35 e 40 na área urbana. Chegar até elas nem sempre é missão das mais fáceis: eles precisam enfrentar lama, poeira, mato, sol forte e chuva amazônica.
“A gente tem uma relação com as comunidades e essas dificuldades fazem parte. Eu me sinto orgulhoso de fazer parte desse trabalho e poder ajudar essas pessoas. A gente faz a diferença aqui”, disse o agente de endemias Paulo César Gaspar, que, pacientemente, vai de casa em casa numa área rural pilotando uma moto entre os trechos de lama e poeira dos ramais.
Os agentes observam se há alguém com sintomas e oferecem o exame. Nas casas com pessoas sintomáticas, os demais membros da família também têm material recolhido nas lâminas que são examinadas em laboratório. “Não há economia no combate à malária. O que nós queremos é qualidade”, disse a gerente de Endemias. Entre os primeiros sintomas e o início do tratamento, não deve ser ultrapassadas 48 horas, de acordo com a recomendação da OMS. “Nosso objetivo é iniciar a medicação com menos de 24 horas, e mais de 70% dos casos no Juruá são tratados no prazo preconizado pelo Ministério da Saúde. Se o exame der positivo, no mesmo dia o agente retorna àquela casa e oferece a medicação”, observa Thayna.
Falciparum pode ser fatal
Ronderlei França dos Santos, casado, pai de dois filhos, mora num Projeto de Assentamento em Cruzeiro do Sul. No mesmo ano ele pegou malária 24 vezes. “Aconteceu de pegar aFalsiparum num dia e a Vivax logo em seguida. Nem tinha curado a primeira ainda. Para umpai de família, isso é muito difícil, porque se eu não for para o roçado cuidar da plantação, não temos nem o que comer nem de onde tirar o sustento. E como a gente trabalha desse jeito?”, pergunta.
Conformado com um novo diagnóstico da doença, Santos diz que tem coisas que ele não sabe explicar. “Minha avó, de 74 anos, mora a vida inteira aqui e nunca pegou. Agora me disseram que ela também está doente. Se ela mora na região que tem o mosquito, como nunca pegou, e gente que mora do lado dela pega toda hora? Às vezes não é só questão de cuidado, a sorte também conta. Na minha casa a primeira a pegar dessa vez foi a mulher, depois o filho, a filha, e agora sou eu de novo”, conta.
Há quatro espécies de protozoários na malária: Plasmodium falciparum, Plasmodium vivax, Plasmodium malariae e Plasmodium ovale. O P. falciparum é o que causa a malária mais grave, que pode ser fatal.
Reconhecimento internacional
A estratégia adotada pelo Acre trouxe resultados positivos e um reconhecimento internacional. Em 2011, o governador Tião Viana e a secretária de Saúde, Suely Melo, representaram o Brasil em Washington (EUA), no prêmio da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). O Acre foi escolhido como a segunda melhor estratégia das Américas no combate à doença. A metodologia usada no Estado foi elogiada e impressionou os demais países por sua eficácia e atitudes simples, porém integradas.
“Estamos muito felizes com o carinho e o respeito que tiveram com o Acre. É uma demonstração de que a decisão política culminada com ação e diagnóstico eficazes pode combater doenças e melhorar a vida de quem vive na Amazônia. Quando a epidemia começou, em 2006, não medimos esforços políticos para enfrentá-la e ainda hoje mantemos o mesmo cuidado, pois a Amazônia é uma região que propicia o desenvolvimento do mosquito”, disse o governador.
Ações integradas são o segredo do sucesso
A redução nos casos de malária no Acre é fruto de ações integradas entre governo, comunidades e instituições, baseadas no monitoramento da qualidade dessas ações e na agilidade. Com o trabalho dos agentes de endemias que conseguem tratar 70% dos casos no prazo recomendado pelo Ministério da Saúde, que é de 48 horas (muitas vezes esse trabalho é feito em menos de 24 horas), é possível cortar o ciclo de transmissão da doença. “Nós não temos excelência só no diagnóstico, feito com base nas coletas domiciliares, mas no controle do vetor com manejo de açudes, com instalação de barreiras físicas e químicas, que são as telas nas janelas, os mosquiteiros e as borrifações”, disse Thayna de Souza.
Hoje a malária faz parte do conteúdo programático das escolas e toda equipe de endemias faz uma palestra por semana numa escola diferente. Assentamentos agrários, empreendimentos e obras como o linhão ou indústrias precisam de um laudo da Secretaria de Estado de Saúde, e com base nele é feito um plano de ação para que não haja interferência no controle da doença. Até mesmo o Programa de Açudagem do governo do Estado, desenvolvido pela Seaprof, está atento a essas condições.
O Ministério Público é um dos parceiros nessa guerra, e já foi acionado em casos em que os moradores se recusam a receber qualquer ação de controle da doença. “Eu já vi uma mulher correr atrás da equipe com um terçado na mão. Fiquei horrorizada. Isso acontecia mais no início do trabalho, mas ainda hoje há alguma resistência. Nesses casos enviamos uma equipe de ‘quebra de recusa’ e tentamos argumentar por quatro ou cinco vezes antes de acionar a ajuda do MP”, explica Thayna.
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