“Eu passava até um ano sem pisar na cidade. Naquela época eu comprava uns mantimentos e ficava por aqui mesmo, a gente ia se aguentando”. A frase de Felipo Nascimento, 64 anos, foi dita enquanto ele contemplava as obras da BR-364 de longe, sentado na varanda de sua propriedade, no quilômetro 47 da rodovia entre Feijó e a região do Jurupari, a última etapa da BR. Felipo é receptivo como poucos. Oferece café, a rede e se diz tímido para falar, mas quando começa a contar histórias, é difícil fazê-lo parar.
Felipo chegou à região que vive ainda em 1977. “Igual a índio, pelado, com uma mão na frente e a outra atrás”, como ele mesmo diz. Aos poucos foi construindo tudo. Foi seringueiro por muito tempo e depois ganhou um casal de bois da herança do pai, chegou a 150 cabeças, abriu açudes. “Pra viver tem que trabalhar, né?”, fala orgulhoso. Mas a vida não era fácil e vivendo até hoje na última etapa não asfaltada da BR-364, Felipo era um cético. “Essa estrada era um sonho, mas distante, a gente não acreditava muito. Tiveram dois anos que nem abriram ela. Eu não minto. Quando disseram que o Deracre tomou conta da obra eu disse ‘vai não’, mas quando começou eu vi que eles tão trabalhando mesmo, então eu digo ‘agora vai’”.
O descrédito de Felipo não foi à toa. Ele viu a BR-364 nascer. “Quando eu cheguei, a estrada do exército era uma beleza quando eles abriam, mas a de hoje é muito mais bem feita. E naquela época fechava no inverno. E no inverno, pra chegar até a cidade, a barriga do cavalo chegava a esfregar na lama”. Por muito tempo ele cansou até de se arriscar a ir para a cidade. E do mesmo jeito que viu a rodovia abrir, viu fechar e viu serviços feitos com erros, que mais atrapalharam que ajudaram, além de todos os trechos estarem hoje asfaltados, menos aquele que ele vive. “Uma vez começaram a fazer umas bases e eu e alguns moradores dissemos ‘Isso aí vai alagar’, aí veio o cara e disse ‘Vai não, confie em mim que eu sou engenheiro’, então eu confiei. Dito e feito, alagou a região toda e eles tiveram que fazer tudo de novo mudando o projeto”.
É o trabalho do Deracre, pela primeira vez atuando na construção da BR-364, que faz Felipo mudar de opinião aos poucos. Hoje ele mora com a mulher numa casa e deixou o filho com sua esposa em outra. Felipo cuida de algumas cabras e de gado, diz que já está velho demais e com poucas forças pra trabalhar, a estrada vai ficar de verdade para seu filho. Ainda assim não deixa de comparar, “Hoje tá maravilhosa, mas é uma coisa que vai ficar pro meu filho, pros netos, eu não tenho mais forças pra trabalhar, as forças ficaram quando ainda não tinha estrada”.
Mas Felipo não é o morador mais antigo da região. Alguns quilômetros mais próximos de Feijó encontramos Francisco Pontes e sua família, que havia saído de casa por um momento justamente para ver a correção de um desbarrancamento na estrada. Com 66 anos e morando há 36 no local, Chico, como é conhecido, ainda esbanja uma energia grande. O produtor rural já está no terceiro casamento e tem 22 filhos, o mais novo com 17 anos.
Ao longo de todos esses anos, Chico relembra jornada que foi a vida ao redor de uma rodovia que por tanto tempo foi intransitável: “Eu vim do Alto Envira. Essa estrada era uma mata. Eu matava porco do mato, cutia, paca pra sobreviver. O quanto eu sofri, a lama chegou a bater na minha cintura. E sem animais eu trazia as compras todas nas costas mesmo. Já fui mordido sete vezes por cobras aqui. Gastava um dia pra chegar na cidade”. E quando questionado se achava que a estrada seria concluída, ele é enfático. “Era duvidoso, mas a gente tinha esperança de arrumarem essa estrada. E eu não estou puxando saco não que eu não sou disso, mas o Deracre tá fazendo um serviço muito melhor que qualquer empresa que já passou por aqui”.
E as gerações mudam, pais assumem o lugar dos filhos e pessoas entram e saem das propriedades as margens da BR-364. É o caso de Antônio Viana, que mora na Terra dos Macacos há oito anos. Antônio é professor de uma das escolas rurais da região e admite “Eu não gostava da zona rural. Tinha pavor. Mas o trabalho exigiu. E hoje eu adoro isso aqui”. Antônio acompanhou a primeira máquina na estrada a partir de 2008, mas diz que quando a estrada fechava no inverno o inferno recomeçava, “Não tinha costume de andar e era andar o dia inteiro. E com carga nas costas. A lama batia no joelho, às vezes tinha que sentar na lama pra desatolar as próprias pernas. Chegava cheio de bolhas nos pés”.
Mesmo morando próximo, a viagem até Feijó em bons momentos levava até 12 horas. Antônio conta que, “O material da escola como merenda e livros vinham de barco até o Jurupari e era trago no lombo de animais até a escola. E nem assim era fácil. A primeira vez que eu atravessei isso a cavalo eu passei uma semana pra me recuperar das dores musculares”.
Hoje Antônio vive com a esposa na casa a beira da rodovia que fica numa região bem mais alta em relação à estrada. Um de seus programas nos momentos de folga acabou sendo sentar na beira do barranco e observar as equipes do Deracre que fazem a conclusão da BR, justamente no trecho onde ele mora. “Tiveram várias vezes que eu queria desistir, mas quando eu vi o governo começar a trabalhar eu pensei ‘agora vai’. Eu vi muita gente dizer que essa estrada nunca ia ser concluída. E eu sei de gente que vai ter que cumprir promessa agora que tão terminando ela de vez”, brinca o professor.