A última fronteira rodoviária

Pela primeira vez, carros trafegam na BR-364 no inverno. O sonho a um passo da realidade

Ela nasceu no Espírito Santo. Ele, na Bahia. Juntos há 12 anos, Alessandra Alves da Silva Moreira, 31, e José Roberto, 31, deixaram Barcelona, na Espanha, onde ela trabalhou de babá e ele, na construção civil, e vieram para o Acre, rever uma parte da família que mudara para o Estado. Chegando pelas terras de Galvez, o casal decidiu fechar a pequena taberna que abrira na periferia de Rio Branco para montar um negócio promissor e inédito em Manuel Urbano, no Acre: uma sorveteria à beira da BR-364. Acredite: não existia nenhuma. E talvez não por falta de ideia, mas de condições. Até pouco tempo atrás esse trecho da estrada não era asfaltado e ficava fechado no inverno. Energia é algo possível graças ao programa Luz para Todos, que já alcançou quase toda a extensão da estrada. E sem energia, não há como ter sorvete. Em outras palavras, o asfalto traz, além de tráfego, inúmeras possibilidades econômicas.

Pela primeira vez em 43 anos de construção da BR 364, a estrada ficou aberta no inverno, integrando de forma definitiva o Vale do Juruá (Foto: Sérgio Vale/Secom)
Pela primeira vez em 43 anos de construção da BR 364, a estrada ficou aberta no inverno, integrando de forma definitiva o Vale do Juruá (Foto: Sérgio Vale/Secom)

Ponto de encontro de motoristas, parada obrigatória de caçambeiros e lugar de lazer para os moradores que vivem nos arredores, a sorveteria oferece sorvetes caseiros, servidos com esmero pelo casal de proprietários. E, para atender com maior zelo os moradores da região, os planos são de ampliar o pequeno comércio e ter sessões de filmes durante as noites. O sonho de Alessandra é se formar em Medicina, por isso trabalhou na Espanha, para juntar o recurso necessário, e agora pretende estudar em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. Ela conta como chegou ao Acre: “Eu nasci na Bahia e há alguns anos minha mãe veio para Rio Branco. Nós viemos visitá-la e acabamos ficando. Compramos uma área de 100 hectares aqui na beira da estrada e decidimos que era melhor vir aventurar a vida aqui, vendendo sorvetes, aproveitando o movimento, do que ter uma pequena taberna num bairro da periferia. E o nosso plano é tornar o comércio um ponto de ônibus”, disse.

A obra com dias contados

O vai-e-vem de caçambas carregadas com material para os trechos, os trabalhadores com seus macacões coloridos, o ronco dos tratores e as frentes de trabalho ao longo da BR-364, entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul, estão com os dias contados. O sonho de concluir a BR nunca esteve tão perto do fim e 2011 entra para a história como o primeiro ano em que a estrada não foi fechada para o tráfego durante o inverno.

O ano de 2011 foi de muito trabalho na BR 364 para garantir tráfego também durante o inverno (Foto: Sérgio Vale/Secom)
O ano de 2011 foi de muito trabalho na BR 364 para garantir tráfego também durante o inverno (Foto: Sérgio Vale/Secom)

As primeiras chuvas começaram a cair ainda em setembro, anunciando a pressa do inverno amazônico em chegar. Chuva no céu, máquina parada na estrada. E a água foi recebida com olhos de dúvida, de quem passou a vida a esperar pelo fim da obra e agora, tão perto do fim, assistiu, da janela de casa, às obras serem interrompidas pelas águas.

Nem o início do inverno foi capaz de conter o esforço de terminar a BR-364. Mas, dessa vez, a esperança foi renovada com uma notícia que traz novo alento. Veículos de passeio, ônibus e pequenos caminhões, pela primeira vez em 43 anos – desde que a estrada começou a ser construída -, não serão impedidos pelas chuvas de cruzar a última fronteira rodoviária brasileira.

Cerca de R$ 300 milhões investidos na BR-364 em 2011

Euclides da Cunha, em 1905, encerrou uma expedição em que percorreu todo o Purus e escreveu sobre a necessidade de uma rodovia ou ferrovia que integrasse o Estado. Com a assinatura do Tratado de Petrópolis e a definição dos limites territoriais acreanos, uma comissão é formada com o objetivo de estabelecer a unidade política e administrativa do Território do Acre. Pouco mais de 50 anos depois, em 2 de fevereiro de 1960, o presidente Juscelino Kubistchek decide integrar o Brasil e assina decreto estabelecendo a construção da BR-364 durante uma reunião com governadores do Norte. A história, iniciada no início do século está perto do fim. A estrada federal, que se inicia em Limeira, no interior de São Paulo, e se encerra em Cruzeiro do Sul, atravessando os vales do Purus e Tarauacá/Envira, será inaugurada no próximo ano. Pontes, bueiros e a maior parte dos 656 quilômetros de asfalto que cobrem o trecho acreano da rodovia já estão concluídos, e o desafio final se resume a pouco mais de 20 quilômetros, entre os municípios de Manoel Urbano e Feijó, próximo ao Rio Jurupari.

O ano da colheita

2011_dezembro_MARCUS_ALEXANDRE_foto_sergio_vale_br_364_37
Diretor do Deracre, Marcus Alexandre, e equipe, foram incansáveis na missão de coordenar e fiscalizar os trabalhos ao longo da BR 364 (Foto: Sérgio Vale/Secom)

Em 1999, o governador Jorge Viana, ao assumir o governo, decidiu entrar em guerra pela construção da BR-364. Até então a estrada ficava a maior parte do tempo fechada, e o primeiro passo foi reabri-la no período do verão. Não havia nem pontes nem bueiros, o que dificultava ainda mais o tráfego. O governo anterior contribuiu asfaltando um trecho que vai de Cruzeiro do Sul à comunidade Santa Luzia e entre Rio Branco e Sena Madureira.

Mas o pouco avanço nos dois trechos asfaltados da BR não permitiam sua reabertura durante o verão sem que um grande esforço fosse feito, e, aos primeiros raios de sol do ano, máquinas e homens entravam na floresta para lutar contra a lama e garantir a passagem dos veículos. “De 1999 para cá as reaberturas foram se tornando cada vez mais rápidas e por um período maior, pois as obras da estrada iam avançando e permitindo melhor trafegabilidade”, explica Marcus Alexandre, diretor do Departamento de Estradas de Rodagem do Acre (Deracre).

Mais de R$ 1 bilhão foram investidos na BR-364 nos últimos 4 anos

Marcus Alexandre lembra que, em 2007, Tarauacá e Cruzeiro do Sul ficaram ligadas no inverno com a pavimentação do trecho. Em 2010 foi a vez do trecho Sena Madureira/Manoel Urbano, pondo fim ao isolamento da população do município, que agora, fica a 40 minutos de Sena Madureira. Este ano, o trecho de 69,5 quilômetros a partir do Rio Liberdade foi entregue restaurado pelo governador Tião Viana. O pior trecho da estrada, um dos mais difíceis na verdade, entre Manoel Urbano e Feijó, está vestido com capa asfáltica, permitindo a passagem de veículos mesmo com as fortes chuvas amazônicas.

“Este é o ano da colheita na BR-364. Foram muitos anos investindo nas obras, nas pontes, nos bueiros, na pavimentação. Agora, pela primeira vez, a estrada está em condições de trafegabilidade no inverno, todas as pontes estão com passagem liberada e algumas, como a de Cruzeiro do Sul e Tarauacá, já foram entregues. Foram muitos anos semeando, cultivando, e agora chegou o tempo de colher o fruto de todo esse esforço de gigante que fizemos”, comemora o diretor do Deracre.

As últimas frentes de serviço

Este ano, 1.200 equipamentos (entre máquinas e tratores) e 3 mil homens trabalharam na BR-364 de forma direta

Marcus Alexandre explica que ainda há três frentes de serviço na BR-364, e que elas só serão desfeitas no último raio de sol, quando o inverno resolver descer com impietude e for, de fato, necessário pendurar os macacões e estacionar as máquinas.

Todas as pontes da BR 364 estão com passagem liberada, o que garante a trafegabilidade no período de chuvas (Foto: Sérgio Vale/Secom)
Todas as pontes da BR 364 estão com passagem liberada, o que garante a trafegabilidade no período de chuvas (Foto: Sérgio Vale/Secom)

“Ainda estamos em obra na ‘variante’ em Cruzeiro do Sul, para levar o asfalto até a saída para Rodrigues Alves. Esse trecho encurta um pouco o caminho e por isso é importante. O anel viário em Feijó, que liga o Rio Envira e a ponte do igarapé Diabinho até o centro do município também está em obras, mas com passagem liberada. E a última era a frente do Jurupari, a chamada ‘terra do meio’, que conseguimos prepará-la para o inverno. Vamos deixar um equipe de manutenção na estrada até maio do próximo ano”, explicou.

O quê?

A BR-364 se inicia em Limeira (SP), vai até a divisa com Minas Gerais, passa por Goiás, Mato Grosso e Rondônia antes de chegar ao Acre, e se encerra em Rodrigues Alves, no extremo oeste acreano, cruzando Rio Branco, Bujari, Sena Madureira, Manoel Urbano, Feijó, Tarauacá e Cruzeiro do Sul.

Pra quê?

Antes da construção da BR-364, só era possível chegar ao Acre de avião. A estrada de ferro Madeira-Mamoré ligava Porto Velho (RO) a partir de Guajará-Mirim (RO) e as balsas permitiam chegar à capital de rondoniense por Manaus (AM). Mas para chegar à capital acreana não havia ferrovia e o Rio Acre passou a não oferecer trafegabilidade para grandes balsas. O transporte rodoviário era inexistente e nem Rondônia nem o Acre eram ligados aos demais Estados por meio de rodovias. O trecho entre Cuiabá (MT) e Porto Velho foi asfaltado em 1983.

Quando?

Em 1958, o presidente Juscelino Kubistchek decide construir a estrada. Dez anos depois, o 5º Batalhão de Engenharia de Construção (hoje, o 7º BEC), inicia a abertura da rodovia, com traçado da estrada. Em 2011, 43 anos após o início da construção, pela primeira vez a estrada se mantém trafegável em toda sua extensão no período de chuvas.

Como?

A BR-364 foi dividida em 20 lotes, para evitar que uma única empresa ganhasse, sozinha, a licitação da obra. As construtoras Canter, Colorado, Construmil, Etam, JM, Meta e Cidade, além da Fidens – que não está mais na construção -, são responsáveis pelo trabalho.

Há três conjuntos de construção. O primeiro compreende o trecho Sena Madureira/Feijó (224 quilômetros). O segundo, entre Tarauacá e Cruzeiro do Sul, é de restauração de 89,3 quilômetros, entregues este ano pelo governador Tião Viana. E o terceiro conjunto se encarregou das pontes sobre os rios Envira, Purus, Tarauacá e Juruá.

“Pra ir ao vizinho tinha que levar um terçado [facão] pra abrir o caminho.”

Helena Gomes dos Santos e a BR-364 compartilham 23 anos de história em comum. Tempo em que a paciência exigia de três a cinco dias numa canoa, dentro dos rios Jurupari e Envira, até chegar a Feijó.

Quando Helena deixou para trás a família e decidiu acompanhar o marido até um pedaço de terra na beira da estrada, a 364 se resumia a um caminho de serviço. O sonho, no entanto, já era o mesmo de hoje, compartilhado com todos os moradores: ver a BR concluída.

2011_dezembro_thumbnails_br_foto_serghio-vale_3978s9d876f97f8
Helena e a BR 364 compartilham uma história de vida, um marido, filhos, netos e sonhos. Muitos sonhos (Foto: Sérgio Vale/Secom)

Sentada na varanda do restaurante que abriu em 1999, próximo ao Rio Jurupari, ela olha o movimento da estrada enquanto os netos brincam ao redor. Quem chegar para comer precisa esperar a galinha caipira, criada no quintal, ser preparada. Hoje a logística da estrada não é a mesma de 10 ou 20 anos atrás, quando caminhões formavam filas que se estendiam por vários quilômetros, esperando que o da frente desatolasse ou o sol secasse um pouco a lama da estrada e permitisse, enfim, a passagem.

Nessa época um trecho curto significava uma distância longa demais a ser percorrida e demorava horas. Isso explica restaurantes não tão distantes assim um do outro analisados do ponto de vista atual.

Próximo ao Rio Jurupari, pelo menos três estabelecimentos fornecem almoço e janta aos visitantes

Após seis meses de namoro com o professor Franscico, Helena decidiu deixar a casa dos pais e casar. O destino seria uma casinha de madeira, à beira da estrada, que então não passava de um caminho que só era aberto no verão, e no inverno até animais tinham dificuldades em atravessar. A mata cobria o que seria a estrada, a única coisa que passava era o sonho de mudança.

A gente só comia o que plantava: arroz, macaxeira, milho. Carne era de caça ou peixe. Se alguém adoecesse, precisava enfrentar até cinco dias de canoa até Feijó. Muita gente adoeceu e não sobreviveu. São 23 anos de sofrimento nessa estrada. Agora, não, está bem mais fácil. Incomparável. A gente pega um carro aqui e com um pedaço está na cidade. E esse ano a BR não deve fechar. É o sonho da gente virando realidade, disse Raimunda.

A família não gostou muito quando Raimunda resolveu sair de casa. “Mas, o que há de fazer, não é mesmo?”, indaga. Hoje ela tem três filhos, uma nora e dois netos.

Ela continua sentada em sua varanda, espiando o sonho se tornar realidade. Mas este ano o brilho nos olhos dela têm um quê a mais de alegria.

Os municípios e a nova dinâmica

Antes isolados, agora, lugares que, além de fazer parte do caminho, oferecem atrativos aos visitantes. A partir de Rio Branco, a BR-364 passa pelos municípios de Bujari, Sena Madureira, Manoel Urbano, Feijó, Tarauacá, Rodrigues Alves e termina em Cruzeiro do Sul. Rio Branco e Sena são ligados desde 1998. Manoel Urbano, que vivia o drama do isolamento durante o inverno mesmo estando a menos de cem quilômetros do asfalto, comemora, desde 2010, o direito de ir e vir a qualquer hora. A partir de Feijó o asfalto permite comunicação com Cruzeiro do Sul. O trecho mais crítico da rodovia fica entre Manoel Urbano e Feijó, com 75 quilômetros de leito natural, onde duas frentes de trabalho se esforçaram para concluir a terraplanagem e aplicar o chamado asfalto frio, um tratamento superficial que permite a passagem de veículos mesmo em época de chuvas.

Mapa da BR

TrechoDistância
Rio Branco/Sena Madureira145 km
Sena Madureira/Manoel Urbano81 km
Manoel Urbano/Feijó143 km
Tarauacá/Cruzeiro do Sul258 km

A nova Manoel Urbano

A história do município de Manoel Urbano pode ser dividida em duas partes, sem medo de errar: antes e depois da estrada. A BR-364 é um divisor de águas na cidade, que vivia isolada e sem perspectivas.

BR 364 reflete os sonhos de milhares de pessoas que moram às margens da estrada que conectou os municípios acreanos (Foto: Sérgio Vale/Secom)
BR 364 reflete os sonhos de milhares de pessoas que moram às margens da estrada que conectou os municípios acreanos (Foto: Sérgio Vale/Secom)

Antes, era necessário um dia inteiro de viagem de carro traçado ou três dias de barco até Sena Madureira. Em outros tempos, movimento na pequena cidade era algo restrito à época do verão.

Visitar amigos e parentes em outro município só era possível em alguns meses do ano. Se alguém adoecesse e precisasse de tratamento na capital teria que ser removido de avião. Esse retrato do isolamento não faz mais parte de Manoel Urbano.

Em 2010, a BR 364, no trecho entre Sena Madureira e Manoel Urbano, pela primeira na história, ficou em condições de trafegabilidade, com um tratamento superficial na estrada.

Galeria de imagens

Compartilhe:

WhatsApp
Facebook
Twitter