A revolta das águas: nada a ver com a gente? – artigo

Ribeirinha às margens do Rio Croa, Acre (Foto: Gleilson Miranda/Secom)
Ribeirinha às margens do Rio Croa, Acre (Foto: Gleilson Miranda/Secom)

“Vocês devem dar aos rios a bondade que dariam a qualquer irmão.”

frase da carta do Chefe Seattle ao presidente dos Estados Unidos em 1855

Aqui, água demais. Lá, água de menos. Extremos que nos maltratam, às vezes flagelam. Fenômenos que vêm e bagunçam tudo. Desarranjam nosso cotidiano, planos, conforto e finanças. Assustam, desestabilizam, confundem. Queríamos seguir nossa vida como antes, sem maiores perturbações nem medo do futuro.

Mas parece não ser possível. Cada desastre desses nos chacoalha, nos tira alguma coisa. E faz emergir o questionamento: por quê? Por que tanto sofrimento? Há até quem diga, consternado, “não merecemos isso”. De minha parte, já vivi o suficiente para perceber que nada é por acaso. Então, há que se perguntar: onde está o mal?

Os vilões clássicos são verdadeiros, em grande escala: a degradação política e a imoralidade empresarial alcançaram patamares deploráveis. Com que tristeza chegamos a uma época em que o principal executivo de uma das maiores companhias alimentícias do mundo se sente à vontade para afirmar publicamente que “a água não é um direito humano básico” e defender a sua privatização!

A grande mídia, por sua vez, empenha-se muito mais em atender a interesses corporativos do que em resguardar o bem comum.

Mas a população também tem sua responsabilidade. E grande. Porque frequentemente dispensa a ética em suas ações. Sem pestanejar, busca vantagens particulares em detrimento do direito do outro. Refestela-se com as pequenas oportunidades de corrupção do cotidiano. Joga lixo no chão, entupindo bueiros e emporcalhando as cidades. Cultiva as mais fúteis práticas estéticas, que constituem francos atos de violência contra o corpo. Exerce sua sexualidade de maneira irresponsável, disseminando doenças e gerando filhos que serão no mínimo emocionalmente abandonados, logo, cidadãos carentes e egoístas.

Ainda, humilha o mais frágil. Morde a isca do consumismo desenfreado para preencher sua lacuna interior. Consome à exaustão programas midiáticos que fomentam valores nada edificantes, consolidando em seu lar uma mentalidade intoxicada e programando suas crianças para a infelicidade. Enfim, comporta-se de maneira amplamente perversa e depois cobra honestidade, virtude e coerência por parte das autoridades constituídas.

A verdade é que, em todas as instâncias sociais, entre grandes e pequenos, manifesta-se o vício. E é precisamente essa configuração de insanidade generalizada que, nas últimas décadas, tornou possível e até normal o que deveria ser um escândalo: a agressão ao meio ambiente.

Destruímo-nos. Liquidamos nossas florestas com seus zilhões de espécies e moradores, derrubamos as árvores dos quintais, desperdiçamos água, exterminamos indígenas, aniquilamos seu habitat e cultura, sujamos nossos rios, poluímos a atmosfera, servimos alimento contaminado em nossas mesas. Sob as justificativas mais cínicas e patéticas, promovemos a doença e a morte.

Porque o sentido da vida se esvaziou. Nossa crise é, portanto, existencial.

Daí a nossa colheita amarga. A aparente desordem do meio ambiente não é vingança nem castigo, mas tão somente resultado, cuja intensidade se manifesta na proporção direta da nossa negligência. É a natureza se esforçando para recobrar o sofisticado equilíbrio que tanto ofendemos.

A revolta das águas, quer se apresentem abundantes ou escassas, é o nosso próprio espelho. Porque a vida é uma teia só. E, se quisermos de fato ter uma chance de aprimorar essa imagem, precisamos urgentemente nos comprometer, antes de tudo, como indivíduos. Dentro do coração, da família, do mundo.

 Onides Bonaccorsi Queiroz é jornalista, escritora e contadora de histórias

 Leia aqui a íntegra da Carta do Chefe Seattle