No dia 7 de outubro se comemorou o Dia do Compositor Brasileiro. Ouvi no programa de rádio, no trânsito. Compositor cria a perfeição do som à escuta humana. Contam por aí que as altas frequências vibratórias ativam a energia do amor, estranhas formas de amar nutrem as composições de irracionalidades. Jairo Carioca é o radialista.
É uma coisa medonha o quão íntima é a voz que nos fala pelas ondas, sintonizando-nos e impregnando-nos de acreanidades com as palavras mais nossas do que qualquer outra coisa – toicim, por exemplo.
Ele fala com as pessoas comuns do cotidiano que não têm pressa, pois todo dia acontece com um toque de novidade, mesmo sendo a mesma coisa: de manhã. O que dizer para quem liga o rádio nesse horário com cheiro de café e cama? O que “foi” ou o que “será” determinam as horas com a cara de agora? Todo dia é dia de alguma coisa.
O programa do Jairo é o lugar das coisas comuns, de tudo aquilo que é hoje, corriqueiro. Sintonizo com o pipoqueiro, o pescador, o sujeito da banquinha de cigarros da esquina, o motorista, a patroa e o patrão, pois então.
Tudo tão normal até eu me dar conta de que o Dia do Compositor, assim como muitas outras manifestações de reconhecimento, também invisibiliza a mulher. De súbito, já na diagonal da Prefeitura me sobem ao pescoço as inquietações do feminismo, das vozes escondidas, sufocadas, reprimidas, torturadas e esquecidas das muitas mulheres que deram vida e consciência à luta pelos nossos diretos humanos, aliás não é isso que somos?
Ora, mas o que é o feminismo?
A expressão feminismo foi dita pela primeira vez em 1937, na França, por Charles Fourier. Feminisme é a voz que clama por igualdade entre os sexos e por terminar com o sexismo e a opressão às mulheres.
O compositor já nos disse que “a vida vem em ondas”; o feminismo também. Em qual onda do feminismo estamos vivendo hoje? Quais os direitos já conquistados, além do divórcio e do voto? Imagine, mulher, que o Estado dava o pertencimento do seu corpo e da sua alma ao homem pela instituição do casamento. Sim, sim, o casamento é um valor da tradição patriarcal, todos os direitos dela ao marido e nada lhe pertence, nem a sua própria dignidade, tudo quem lhe concede é o homem, diz aquela voz no escuro – se for uma boa esposa, será uma boa mulher; fora isso, não presta. As vadias rebeldes se inflaram, arrebentam correntes, derramaram o próprio sangue e aqui estamos, de manhã, no carro.
O programa termina e o locutor dedica ao dia uma canção pantaneira, enquanto aquele bioma se deforma em cinzas. Almir Sater e Renato Teixeira: “Ando devagar porque já tive pressa…”, uma vaguidão silenciosa do pensamento toma conta do ar. Nauseada, desligo o motor do carro e subitamente o dia começa a funcionar mecanicamente, pessoas andando de um lado para o outro com papéis rabiscados nas mãos, máquinas ligadas às redes e o monótono bom dia de repartição.
Mulher e infortúnios entre paredes se traduzem em números todos os dias. O Acre é o primeiro do Brasil em feminicídio, proporcionalmente à quantidade de mulheres residentes, por exemplo. Até junho deste ano, oito mulheres foram vítimas desse tipo de crime. São 13 filhos menores órfãos de mães em pouco menos de um ano e meio. Ao relógio é dada a corda, o botão da pressa gira, a cada segundo uma mulher é agredida. 21h é a hora perigosa, a maioria das mulheres assassinadas em casa por seus maridos ou ex-companheiros morreram nessa hora fatídica de suposta intimidade do casal, quem sabe até em cima da cama quando se preparavam para o dia seguinte. O outro dia para o destino de uma mulher ameaçada é sempre uma incógnita, apenas.
Muitas bandeiras do feminismo estão sendo bravamente erguidas por mãos pretas nessa quarta onda do feminismo, à luz da clara visão da interseccionalidade. Problemas travosos ao paladar precisam ser degustados pela sociedade, especialmente pela burguesia branca. A minha boca é pequena para esse tipo de grito de ternura com gosto de sangue na boca, precisa de multidão sem espanto para adquirir potência sonora e ecoar. A luta por igualdade é coletiva e o feminismo é plural.
O direito ao próprio corpo é um tipo de libertação. A expressão tingida em cartazes “O meu corpo é político” nos fala sobre muitas coisas, desde a roupa que vestimos até o direito ao aborto; política é isso: poder.
Transfobia, cultura do estupro, machismo, misoginia e toda forma de violência, discriminação e opressão contra as mulheres precisam de bocas reverberadas e compreendidas com a mesma serenidade intranquila e desconfortável com que Jairo fala da hora, alerta sobre o trânsito, aquiesce gentilmente a oferta dos serviços públicos e gratuitos à população. Falar de feminicídio é tão cruelmente amorfo quanto sepultar um corpo humano rejeitado e que até já deu frutos.
Jairo, um dia a humanidade sentirá amor pela multiplicidade da vida para ser plenamente feliz, ainda que se possa viver sem a tal felicidade. Qual composição você se daria hoje em sua própria homenagem? Com os olhos aquecidos pelas verdades da canção que falava sobre ir tocando em frente, o tremor da missão me atingira com asco, sou mulher, e o meu dia já era outro no início do fim da tarde, havia pressa, tudo pode acontecer às 21 horas. Como disse Clarice (quando falou de amor), a crueza do mundo é tranquila, o assassinato é profundo e a morte não é o que pensávamos.
Esse texto foi escrito com recursos extraídos de “O Livro do Feminismo”, Editora Globo Livros (2019) e do relatório técnico sobre feminicídios no Acre elaborado pelo Observatório de Análise Criminal do Ministério Público do Acre.
Bethe Oliveira – Economista e escritora do livro Loucas e Bruxas, Bruxas e Loucas: contos e poeminhas pela Editora 3 Serpentes.