Em novembro de 2008, após dias de chuva ininterrupta, vi a água subir no quintal e ficar a poucos centímetros da porta. Morava em Florianópolis há três anos. Nesse período havia enfrentado a força do vento – o “sule”, segundo meus vizinhos da Armação –, fazendo tremer as paredes de madeira da casa e arrastando telhas, roupas no varal, cadeiras de praia, sandálias. Mas nada parecido com aquela água que trazia para tão perto de casa lesmas, sapos, vermes.
Passei pequenos transtornos com a chuva e as goteiras, que me obrigaram a ficar parte da noite enxugando o piso da sala, da cozinha, dos quartos – apenas um escapou –, afastando móveis, enxotando pererecas e outros bichos com a vassoura, o rodo, o balde. Durante toda a noite e o dia seguinte ficamos em casa, eu e minhas filhas, sem comunicação: o telefone não funcionava, a TV havia molhado, o computador eu não arriscava ligar na tomada.
Então a água baixou. Vi, pelo vidro a varanda, o quintal e senti vontade de chorar. Mas não dava tempo porque ao meu redor outras mães pranteavam a perda dos filhos ou da casa, em uma tragédia que mobilizou a imprensa nacional: as enchentes em Santa Catarina.
Hoje, passados pouco mais de três anos, vejo a água subir novamente. Desta vez nos quintais de minha gente, desse povo simples, forte, trabalhador e hospitaleiro que cresceu ouvindo o silêncio dos rios e não o barulho do mar.
Aqui não temos o pranto por centenas de filhos soterrados ou arrastados pela correnteza. Mas vejo, assim como vi em muitas cidades catarinenses durante as enchentes de 2008, telhados submersos, milhares de famílias desabrigadas, casas arrastadas pelas águas, destruição, lama e tristeza – a maior delas, talvez, com o silêncio.
Não o dos rios – pois mesmo quando furiosos, guardam tanta poesia! –, mas o da imprensa, que a despeito das chuvas nesse rincão da Amazônia, elege suas pautas baseadas em critérios tão perversos quanto o número de acessos que uma notícia pode gerar: o que interessa ao Brasil se parte do Acre está embaixo d’água?
Não tenho intenção de convencer ninguém do que vou dizer agora, mas depois de ter acompanhado de perto o drama das enchentes de 2008 em Santa Catarina, este belo e rico estado brasileiro, passei a acreditar que solidariedade também se ensina. E a mais eficiente lição é dada pelos veículos de comunicação de massa.
Vejam que escrevi “a mais eficiente”. Porque foi graças às imagens veiculadas na internet ou jornais televisivos que o Brasil chorou junto com os catarinenses. E se mobilizou em uma campanha nacional da qual também colaboraram os acreanos. Esse povo simples e tão solidário.
Hoje, a despeito da mídia nacional e, portanto, longe dos olhos e dos corações de outras famílias brasileiras, os acreanos esperam as águas de seus rios baixarem.
Em alguns municípios, como Brasileia, as imagens provocam em mim o mesmo desolamento que senti ao ver fotografias de Itajaí, em 2008. Com uma diferença: após ter 95% de sua área atingida pela cheia, a pequena cidade acreana, localizada na fronteira com a Bolívia, se prepara para a reconstrução sem alarde.
Sem a grande solidariedade que poderia brotar caso a imprensa nacional resolvesse mostrar a cor de nossos barrancos, mas com a ajuda dos governos estadual e federal; de campanhas organizadas no próprio estado e de pessoas humildes que não têm muito mais a doar além de seu tempo, a força de seus braços, suas palavras de conforto, sua fé – em uma demonstração, genuína, do significado de abraçar o outro.
Vássia Silveira, jornalista