A educação que dá asas

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Valdemira ensina a mãe, dona Francisca, a escrever as primeiras palavras que ela aprendeu com o programa Asas da Florestania (Fotos: Angela Peres/Secom)

Pacientemente, Valdemira pega a mão da mãe, endurecida pela vida difícil nos roçados e nas estradas de seringa, e, risco a risco, vai desenhando as primeiras letras até formar uma frase. Essa dedicação e esse carinho, que dona Francisca Coelho nunca encontrou em nenhuma outra professora a não ser na própria filha, fizeram com que ela, aos 64 anos, aprendesse aquele que talvez seja o maior desejo de quem não é alfabetizado: escrever o próprio nome.

Para chegar à Colocação Humaitá, na Reserva Extrativista Chico Mendes, em Assis Brasil, é preciso um carro com tração nas rodas e, de preferência, um pouco de sol para "enxugar" o ramal. É lá que mora Valdemira e a família dela. São mais ou menos 40 minutos da casa de Valdemira até o ramal principal, e de lá, mais 20 minutos até a escola. Esse caminho é percorrido todos os dias, de chuva ou de sol pela Toyota que faz o transporte escolar dos alunos.

Valdemira casou cedo, teve dois filhos, voltou pra casa dos pais após o término do casamento. Filha mais nova de uma família de 11 irmãos, leva uma vida simples, na rotina de quem mora na floresta: fica em casa com a mãe e as crianças enquanto os irmãos e cunhadas ajudam nos roçados e na extração de látex.

Aos 25 anos ela se esforça para seguir um caminho que nenhum dos dez irmãos teve a oportunidade de trilhar: sentar num banco de escola. Valdemira é uma das alunas de um programa educacional de vanguarda na Amazônia: o Asas da Florestania. O direito ao estudo é constitucional. Mas a realidade amazônica impõe desafios de gigante entre o que diz a lei e o que se consegue alcançar.

Valdemira é aluna do Asas da Florestania Fundamental, que trabalha do 6º ao 9º ano. Há também o Asinhas, para o ensino infantil, e o Asas Médio.

O pouco saber que tem, Valdemira divide em casa com os pais e os irmãos. Ao chegar da escola, no fim do dia, ela reúne a família para, pacientemente, ensinar as primeiras lições. A mãe, Francisca Coelho, nasceu e se criou em seringais. Nunca pôde colocar os pés numa escola e também não teve o prazer de dar esta oportunidade aos filhos. A única que teve o privilégio foi Valdemira. "A escola não era perto de casa, precisava de roupa, sapato. A vida sempre foi muito difícil", explica. Hoje, aos 62 anos, Dona Francisca pode dizer que sabe escrever o nome e reconhecer as letras do alfabeto. É a filha caçula que pega na mão da mãe e desenha com ela as primeiras frases de sua vida. "Pra mim é um orgulho que não tem tamanho ver a minha filha me ensinar. Eu nunca me senti bem para aprender com mais ninguém, sempre tive vergonha de não saber ler e escrever. Agora esse tempo na minha vida já passou", disse.

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O pouco saber que tem, Valdemira divide em casa com os pais e os irmãos. Ao chegar da escola, no fim do dia, ela reúne a família para, pacientemente, ensinar as primeiras lições (Foto: Angela Peres/Secom)

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{xtypo_quote_right}A gente nunca poderia ter um desenvolvimento econômico vitorioso sem ter pelo menos uma população que tivesse acesso à educação básica, que vai do ensino infantil ao médio. O que fizemos? Partimos para a inovação, buscamos referências do que era feito em outras partes do mundo e com base nos dados coletados montamos um projeto piloto que foi vitorioso
Binho Marques, governador
{/xtypo_quote_right}O Asas da Florestania é um programa de ensino desenhado pela Secretaria de Educação do Estado do Acre para levar oportunidade de estudo a comunidades isoladas. O conteúdo é o mesmo do ensino regular, mas aplicado em módulos, e as aulas são ministradas por um único professor.

"O Asas é um programa inovador que conseguiu mudar a cara da educação no Acre, levando ensino para comunidades mais distantes, isoladas. Quando nós assumimos o governo em 1999, metade dos municípios não oferecia o Ensino Médio em suas sedes, muito menos nas áreas afastadas", relembra o governador Binho Marques, um dos principais idealizadores desse projeto.

A falta de uma política educacional que levasse o ensino até áreas de difícil acesso num estado com 88% de cobertura vegetal significava um grande entrave para o desenvolvimento social. "A gente nunca poderia ter um desenvolvimento econômico vitorioso sem ter pelo menos uma população que tivesse acesso à educação básica, que vai do ensino infantil ao médio. O que fizemos? Partimos para a inovação, buscamos referências do que era feito em outras partes do mundo e com base nos dados coletados montamos um projeto piloto que foi vitorioso. Hoje o programa é um grande sucesso e faz com que possamos ter a mesma educação dada na cidade em áreas isoladas", comemora o governador.

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Material didático utilizado no programa foi produzido por técnicos da SEE com base na realidade local dos alunos (Foto: Angela Peres/Secom)

A metodologia do Asas da Florestania trabalha apenas com um professor, capacitado para atuar em todas as disciplinas. O Asinhas é a modalidade que trabalha o ensino infantil, para crianças de 4 e 5 anos. O Asas Fundamental trabalha do 6º ao 9º ano e o Asas Médio, dá continuidade ao trabalho.

O ensino médio dentro do Asas da Florestania não é oferecido apenas por um professor e três educadores se dividem entre as disciplinas. Do 1º ao 5º ano o programa não é aplicado. Ou as crianças estudam no ensino regular, em comunidades maiores, ou através do programa Escola Ativa, usado em localidades com poucos alunos, onde é trabalhado o sistema de multi-série.

A secretária de Educação explica que há técnicos da secretaria que se dedicam a acompanhar a execução do programa e fazem visitas mensais às comunidades atendidas pelo Asas. Além disso, em cada município onde o programa é desenvolvido existe um núcleo que auxilia na monitoração do programa. Os professores passam por três capacitações durante o ano. "Como é um trabalho novo, usando apenas um professor, é preciso ter muito cuidado para que o professor dê conta de repassar todo o conteúdo necessário. O conteúdo é o mesmo do ensino regular, só que trabalhado de forma diferenciada, com muitas atividades e dinâmicas".

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Desafio do programa é levar o ensino para as comunidades mais isoladas do Acre (Foto: Angela Peres/Secom)

O Acre é um estado com cerca de 700 mil habitantes e 88% de cobertura vegetal, localizado em meio à maior floresta tropical do mundo, a Amazônia. Uma região de vegetação densa, muitos rios, períodos de chuvas intensas que muitas vezes se prolongam por mais de seis meses. Cerca de 40 mil famílias vivem em áreas isoladas ou de difícil acesso, onde só é possível chegar através de aviões bimotores, carros traçados ou por meio de barcos. As casas dos ribeirinhos e seringueiros, populações tradicionais da floresta, ficam distantes umas das outras.

O desafio, então, é montar uma escola para levar ensino a esta população. "A grande dificuldade em educar na Amazônia é trabalhar com um público rarefeito. Como levar o modelo de escola da zona rural para regiões que tem 10 ou 15 alunos? Como montar uma escola para atender tão poucos estudantes e no ano seguinte não ter clientela?", questiona a secretária de Educação. Maria Corrêa explica a dificuldade em trabalhar com a educação na região: "Às vezes abrimos uma turma, formamos aquela turma e no ano seguinte não tem mais alunos naquela faixa de idade na comunidade. Então não se pode ter o ensino regular na forma como temos em uma comunidade maior. Um assentamento, por exemplo, tem uma escola estruturada, com todos os níveis de ensino, da forma como é trabalhado na zona urbana, mas levando em conta as características e a realidade da zona rural".

O Asas é para comunidades isoladas, distantes, onde não há como levar um ensino estruturado. O material didático utilizado no programa e foi produzido por técnicos da Secretaria de Educação com base na realidade local e contém informações que os alunos utilizam no dia-a-dia. Peculiaridades da região em que moram fazem parte do conteúdo. Para elaborar o material, a SEE contou com a consultoria de um instituto especializado, Instituto Abaporu de Educação e Cultura.

Asas Fundamental – 4.396 alunos em 18 municípios

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Aos 43 anos, Celita voltou para o banco da escola graças ao programa Asas da Florestania (Foto: Angela Peres/Secom)

Aos 43 anos Celícia Araújo, a Celita, voltou para o banco da escola e virou a aluna mais velha da turma. Ela foi alfabetizada em casa, por uma prima que morava em outro seringal e que passou seis meses morando na mesma colocação. O tempo foi suficiente para que aventurasse os primeiros riscos de lápis no papel, desenhando letras e construindo frases. A prima foi embora, mas Celita não parou de rabiscar seus cadernos para não esquecer o tesouro que tinha aprendido: ler e escrever. Como a escola ficava em uma colocação distante, ela não a freqüentava. O tempo passou, ela casou, vieram os filhos e somente em 2000 ela teve a oportunidade de voltar a estudar, com a chegada da Educação de Jovens e Adultos (EJA) na Colocação Cumaru, na Resex Chico Mendes, em Assis Brasil. Ela concluiu o ensino fundamental e ficou três anos a espera do Ensino Médio, sonho que ela realiza agora.

Hoje, de segunda a sexta-feira, as tardes de Celita estão preenchidas com um afazer do qual ela não abre mão: cursar o primeiro ano do ensino médio. "É muito difícil pra dar conta de estudar, pois tenho que cuidar do almoço da família, da casa, lavar roupa. Eu sirvo a comida e vou pro galpão fazer as sapatilhas de borracha que ajudam no nosso sustento. Agora quem faz a janta é o marido", conta a seringueira.

As condições que outrora não ajudavam para que Celita, quando criança, frequentasse a escola, agora jogam a favor dos estudos dela. A escola onde o ensino médio está disponível através do programa Asas da Florestania é bem ao lado de sua casa. "Eu faço questão de estudar. Gosto do método de ensino, as avaliações são em grupo, as atividades ajudam muito na compreensão. Eu esperei muitos anos por este momento e acho que não é tarde para correr atrás desse sonho", comentou.

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Carla largou o conforto da cidade para ajudar a construir o programa que leva educação para o meio da floresta amazônica (Foto: Angela Peres/Secom)

Ela largou a família, a comodidade da cidade, internet e os amigos. Trocou um emprego com carteira assinada por um contrato temporário. Deixou para trás a capital de Rondônia e veio para a floresta amazônica, numa região que fica isolada durante o inverno e que ela não conhecia. Na verdade, nunca havia colocado o pé numa floresta, embora morasse na região Norte.

Carla veio para o Acre a convite de um amigo professor que dava aulas no Asas da Florestania. Conversando com ele sobre a experiência ela se interessou e decidiu encarar o desafio. "Vim conhecer este mundo diferente. Botei a cara a tapa e arrisquei. Fui bem aceita. Mas vim sem preconceitos, sem receio, para ficar apenas um ano e já estou há dois. Aprendi a dar a valor à vida, à família e vivi experiências maravilhosas com meus alunos aqui", disse a professora Carla Teles Barroso.

Agora, Carla se informa pela Rádio Nacional. O celular só funciona quando conectado a uma antena disponível na casa de uma vizinha. "Agora eu já me desliguei de tudo e não sofro tanto sem televisão, internet. Nunca tinha entrado numa floresta. Apesar do impacto ser grande, fiquei encantada. Tirava foto de tudo. Na primeira semana tirei 1,5 mil fotos: da lama, carro atolado, das árvores enormes, dos ramais, casas, animais. Tudo era uma grande novidade".

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Os irmãos Francisco e Luzia são exemplo de determinação e esforço em nome do aprendizado (Foto: Angela Peres/Secom)

Francisco da Silva tem 24 anos. Luzia Ribeiro, 22. Francisco quer ser técnico agroflorestal. Luiza, médica. Eles são irmãos e moram na colocação Amatório, dentro da Reserva Chico Mendes, em Assis Brasil. Concluíram o ensino fundamental e esperaram dois anos para cursar o ensino médio. Chegaram a pensar que não teriam esta oportunidade, pois não poderiam ir para a cidade. Quando o programa foi instalado dentro da resex, o sonho ficou mais perto da realidade, embora os desafios ainda fossem grandes.

Luzia e Francisco moram há pelo menos quatro horas a pé da comunidade em que o programa está disponível. Para estudar, eles precisaram deixar a família e improvisar uma moradia ao lado da escola. A cada 15 dias eles visitam os pais e matam as saudades de casa.

"Nós ficamos muito felizes quando soubemos que teria ensino médio aqui na reserva. Era uma certeza de que nós poderíamos começar e terminar os nossos estudos. Eu sonho em fazer medicina, não sei se é um sonho ao meu alcance, mas continuarei sonhando. Eu não achei que faria o ensino médio e estou fazendo", disse Luzia.

Asas Médio – 3.040 alunos em 13 municípios

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