Cruzeiro do Sul: 120 anos de cores, sabores e sons de uma das poucas cidades planejadas da Amazônia

Das memórias afetivas que mais sou apegada, com certeza estar deitada olhando para o céu em busca da constelação de Cruzeiro do Sul em noite estrelada está no meu top 5. Quando criança, meu pai contava histórias de seringueiros, pescadores e quando o céu parecia estar mais perto de nós, ele ensinava como identificar aquela constelação que dava nome à cidade onde nasci e me criei, estabelecendo memórias que até hoje me ligam ao sentimento de lar, de pertencimento àquele lugar.

Já me desculpando por parecer bairrista demais, mas, o céu de Cruzeiro do Sul é diferenciado. Não é à toa que fazia parar uma criançada ligada nos 220 volts… Era difícil não deitar de peito pra cima para ver aquele manto estrelado que parecia estar tão perto de nós. Era um dos meus passatempos preferidos, assim como adivinhar quais os desenhos se formavam naquelas nuvens em dias de céu azul e limpo.

Minha infância foi em igarapés, pé no chão e ouvindo histórias de personalidades icônicas que fazem parte dessa história. Em cada canto da cidade, de ladeiras compridas, arquitetura diferenciada e escadarias famosas, a imaginação voava longe. Quantas histórias não criei e quantas vezes remontei a casa do Joaquim Maria Ruela, que os mais velhos falavam que era um verdadeiro palácio.

Por um tempo, moramos perto de Seu Januário. E em uma ladeira gigante descíamos de carrinho rolimã feito com latas, daquele jeito bem improvisado. A risada era certa e a preocupação dos pais também. E como tive a sorte de crescer em uma família que ama música, tive acesso cedo às músicas regionais que contam nossa história.

Como não citar “Retórica Sentimental”, de Alberan Moraes, que fala dos inúmeros personagens sobre os quais crescemos ouvindo suas narrativas. Alguns até fazem parte de nossas famílias.

“Tanta gente aqui chegou, gente boa que partiu
Avô Carrapicho, Tereza Biloto, Dom José, Sr. Jamil
Como é bom sonhar poder recordar
Do Antônio Branco, Antônio Geraldo
Paturí, da Chiquita, da Guidola
Dona Fifi, dona Quita, da morena
Sr. Estevão e o Moacir, Sr. Mansito
Sr. Lindolfo do Mamede Cameli
Me lembrei dos comissários
Sr. Alfredo, Januário, carnaval no ideal”.

Daquela época, apesar de pequena, lembro-me dos meus pais se arrumando para grandes bailes, como os que aconteciam no Clube do Magid, Samambaia, Asmirrex e nas grandes festas da Maçonaria. Tive muita sorte de nascer e me criar nas águas pretas do meu Juruá. Na vida, podemos ter muitas casas, ocupar diversos locais, mas há sempre para onde nossas raízes nos chamam. Há espaços em que nossas boas lembranças moram e as minhas estão em Cruzeiro do Sul.

Lembranças que têm sons, cheiros e gostos. Como o badalar do sino da Catedral, que por muitos anos foi batido pelo Seu Alberto Brito. Nascido em 15 de novembro de 1932, no Seringal Cruzeiro do Vale, Colocação Campo de Santana, em Porto Walter, também no interior, o ministro da eucaristia começou a tocar o sino da Catedral, quando o prédio ainda era construído em madeira, no alto do Morro da Glória.

Ainda do som característico dessa terra, como não lembrar da revoada de andorinhas no Centro da cidade no fim da tarde. O aviso sonoro de que aquele dia estava terminando, mais eficaz do que qualquer relógio de ponteiros.

Dos cheiros, tenho a lembrança do café sendo torrado pelo Centro da cidade, das feiras e mercados que sempre gostei de visitar e adoro, até hoje, explicar para os rio-branquenses que o pé de moleque conhecido por eles nos é conhecido como beléu. Do gosto ainda tenho na memória o vip e o picolé de buriti. Por muito tempo, quando vim para a capital, esta era uma das minhas saudades gastronômicas mais fortes. Agora já conseguimos achar esse picolé com mais facilidade pelas bandas de cá.

Outra característica que me vem à cabeça da culinária cruzeirense é o uso da pimenta do reino fortemente nas receitas. Bom, pelo menos na minha casa, é um dos temperos principais e quando sinto o gostinho dela já me teletransporto para a mesa de casa, com todo mundo falando junto.

Como não citar tantos nomes inusitados: Ladeira do Bode, Ladeira da Remela, Morro dos Quibes e Estrada Tiro ao Alvo. O Cais também é ponto de encontro, local que alguns historiadores querem deixar como Marco Zero da cidade. Por lá chegavam as embarcações na cidade.

Terra boa também desde as águas do Rio Croa e as praias que se formam ao longo dos rios Moa e Juruá. Nas curvas dos rios, seguem também as narrativas contadas pelas perspectivas de seus olhares. Histórias eternizadas em melodias ou nos contos de narradores que se deparam com ouvidos curiosos e atentos.

Nos 120 anos, vale lembrar o início dessa cidade, uma das poucas planejadas da Amazônia, pensada para ser uma fortaleza militar, mas se tornou um refúgio dos filhos dessas terra, que têm sangue do povo dos Náuas e tem crescido no ritmo do desenvolvimento acelerado, sem perder a graça e os traços de uma Cruzeiro do Sul de outros tempos.

Que a história permaneça viva e que a segunda maior cidade do estado continue nas memórias vívidas dos filhos dessa terra, seja eternizada por seu hino ou nas canções de talentosos artistas locais. Pedindo licença para citar mais uma vez Alberan, termino esse texto citando esses versos, que fazem morada nas minhas boas lembranças:

“Como é bom sonhar, poder recordar
Vendo cinco estrelas num céu todo azul
Eu quero é cantar pra um dia brilhar
Tua história é meu canto, Cruzeiro do Sul”.

Tácita Muniz é comunicóloga, repórter na Agência de Notícias do Acre; trabalhou por quase 11 anos na editoria do Portal G1 no Acre, encabeçando projetos envolvendo todos os estados. Também foi responsável por alimentar uma página com reportagens especiais sobre a Amazônia. É fã de rock, filmes, livros e boxe, além de aprendiz de escritora nas horas vagas.

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