‘Nós podemos fazer gestão’, diz Francisca Arara, primeira mulher indígena nomeada secretária de Estado

A primeira mulher indígena nomeada secretária de Estado nasceu na Aldeia Foz do Nilo, em Porto Walter, cidade isolada do Acre, e carrega em sua trajetória a marca da representatividade não só feminina, mas também do seu povo Arara Shawãdawa. A história de Francisca Arara, secretária extraordinária de Povos Indígenas do Estado (Sepi), se confunde com a da sua etnia, que sofreu com as chamadas correrias no século 19, período do ciclo da borracha, e que quase dizimou os indígenas não dessa etnia, mas de outras do estado.

Francisca Arara foi a primeira mulher indígena a ser nomeada no Estado. Foto: Marcos Vicentti/Secom

Resiliência e persistência. Assim se resume a história de Yaka Shawãdawa, nome na língua materna de Francisca Arara. Filha de seringueiro, o pai chegou a ser descolocado – termo dado ao seringueiro que era expulso das terras dos patrões da borracha. O caminho de Francisca foi trilhado sob muitos desafios, mas, acima de tudo, a educação a salvou.

Voz reconhecida nacional e internacionalmente, coube a ela ser uma das representantes indígenas com mais influência. E tem feito jus ao nome indígena, uma vez que Yaka significa pássaro que voa muito longe. E foi isso que ela fez: voou longe, ultrapassando os limites da terra onde nasceu.

Da aldeia de uma área isolada, Francisca saiu para falar ao mundo em defesa dos povos indígenas. Articulada e compromissada com a causa, o reconhecimento veio na gestão de Gladson Cameli, que apostou e a nomeou, em julho do ano passado, na Secretaria Extraordinária de Povos Indígenas do Estado (Sepi).

Sobre o fato de ter se destacado e ser reconhecida, ela diz que é um passo importante em uma sociedade que reverencia com frequência a liderança masculina.

“É uma questão de cultura o homem ser o protagonista, querer dominar. Nasci e me criei na aldeia, fui professora por oito anos e depois fui coordenar a organização de professores indígenas do Acre. Na época, éramos poucas professoras e hoje a metade dos professores indígenas é mulher. Então, a gente deu um avanço muito grande e fui ganhando esse espaço não somente por ser mulher, mas porque podemos estar nesse espaço. Conseguimos ficar ao lado dos homens. Não estamos competindo, mas estamos ao lado deles, ajudando e pensando em estratégias juntos”, destaca.

Aidê, matriarca do povo Arara, fala da importância dos festivais e de a filha levar a cultura indígena para o mundo. Foto: Marcos Vicentti/Secom

Igualdade

A parceria e equidade fazem parte da equipe da secretária. Na pasta, a equipe é composta 50% por mulheres e 50% por homens.

“Sou a primeira mulher secretária indígena do nosso estado. O governador depositou confiança. É uma reação em cadeia, porque hoje minha diretora também é mulher e metade da minha equipe é homem e a outra metade mulher. Acredito que nós podemos fazer um trabalho muito bom juntos”, destaca.

A pasta voltada para os povos originários no estado tem um histórico de lideranças masculinas assumindo a vaga. Porém, desde 2023, uma mulher coordena as políticas públicas para os indígenas. Uma mulher que conhece a realidade nas aldeias e que faz sua voz ecoar em diversos países.

Para Francisca, a pauta feminista tem avançado, mas ainda é preciso diariamente se impor e mostrar que sabe do que está falando.

“Ainda é muito difícil, porque quando a gente vai falar o homem sempre quer falar pela gente. Sempre estão colocando uma palavra na nossa frente com aquela desconfiança de insegurança, mas hoje temos grandes representantes femininas, como a ministra Sonia Guajajara e Joenia Wapichana, que é presidente da Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas]”, pontua.

Além disso, à frente da pasta, Francisca destaca que tem dado prioridade a incluir servidores indígenas para que mais vozes possam fazer a pasta avançar.

“Temos um quadro de gestores não só de brancos, mas de homens e mulheres, e assim não só a Francisca é secretária, mas estamos colocando outros povos e homens e mulheres para coordenar essa política de gestão pública, de financeiro, mudanças climáticas, serviços ambientais, governança, salvaguarda, participação, e, principalmente, fazer com que os recursos cheguem aos territórios com a cultura, o turismo”, destaca.

Aidê, mãe de Francisca Arara, disse que teve que aprender a dividir a única filha mulher com o mundo. Foto: Marcos Vicentti/Secom

Força de mãe para filha

Francisca é a única mulher de onze irmãos. Para a matriarca do povo Arara Shawãdawa, Aidê Varela Lima, a filha foi um presente que ela teve que aprender a dividir com o mundo.

Ela relembra o sentimento de ouvir sobre o Festival Kãda Shawã Kaya, do Povo Shawãdawa, que ocorreu de 27 a 29 de janeiro na Aldeia Foz do Nilo, na Terra Indígena Arara do Igarapé Humaitá, em Porto Walter. Com orgulho, ela fala de Francisca, de suas conquistas, mas revela que quando a filha precisa se ausentar, a saudade ainda bate forte.

“Tive onze filhos, fiquei com nove, e a Francisca é um presente que Deus me deu e tenho gosto de ter tido. Quando saiu mensagem dizendo que era o festival da Francisca, fiquei muito feliz. Já faz tempo que ela disse pra gente não esquecer da nossa cultura, o poder que temos. E ela ajuda muito, não tem uma pessoa que faça mais pelos indígenas do que a Francisca. Quando ela vai embora, eu fico, no meu coração, cantando para ela escutar um canto de despedida”, explica após cantar uma música tradicional na língua materna, que diz que quando a filha vai embora, o coração dói.

Sepi tem como objetivo preservar a cultura indígena em todo o estado. Foto: Marcos Vicentti/Secom

Resultados

Hoje, além de lutar para o fortalecimento da cultura indígena no estado, como no etnoturismo e economia, Francisca também trabalha na preservação da floresta, levando aos povos recursos e capacitação, que são aliados à redução de desmatamento em terras indígenas.

Para isso, o Estado conta com 200 agentes agroflorestais indígenas formados, que estão inseridos nos 2,4 milhões de hectares de floresta em pé. A taxa de desmatamento dessa área é menos de 1%, segundo dados levantados pela Secretaria Indígena, que apontam também que nas terras indígenas estão concentrados 90% da reserva de carbono do estado.

A população indígena do Acre cresceu mais de 80% em 12 anos. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número passou de 17.578 para 31.694 – 80,3% a mais do que no recenseamento anterior.

Um dos atos mais simbólicos da gestão ocorreu este ano, quando foram incluídos no calendário oficial do Estado 23 festivais indígenas, que, pela primeira vez, terão todo o apoio do governo do Estado.

“Estamos fazendo a coisa certa na parte da cultura, do fortalecimento do etnoturismo, que foi conseguir colocar mais de 20 festivais no calendário oficial. São nesses festivais onde se resgata cultura, língua, brincadeiras, rituais e culinária, além de ser um reencontro com parcerias municipais, estaduais e federais”, destaca.

Este ano também o Povo Arara comemorou, pela primeira vez, a visita de um governador na sua terra indígena. Durante a abertura do festival, no dia 27 de janeiro, Gladson Cameli esteve na Aldeia Foz do Nilo, onde reforçou seu compromisso com os povos originários.

“Estou emocionado. Aqui tem uma energia, e me proponho a vivenciar essa experiência para que eles [indígenas] saibam que são o termômetro do mundo. Eu não vou decepcionar os povos da floresta, os povos indígenas, e vamos fazer tudo aquilo que pudermos para que a gente possa cuidar das pessoas. Nós somos iguais”, disse ao ser recebido no festival.

Ter uma representação feminina em uma pasta voltada para os povos originários faz com que outras mulheres se fortaleçam. Foto: Marcos Vicentti/Secom

‘Nós podemos fazer gestão’

Sobre os desafios, reconhecimento e representatividade, Francisca destaca que é uma história escrita dia após dia, respeitando a luta dos seus antepassados e construindo um futuro mais acolhedor para a juventude que deve seguir com o trabalho de preservação da identidade.

“Quero deixar um recado para as mulheres indígenas ou não indígenas. Nós estamos aqui porque nós podemos estar nesse local, nós conseguimos, foi uma luta nossa para estarmos aqui. Nós podemos fazer gestão, política, fortalecer nossa cultura, captar recursos para chegar na nossa terra para viver muito bem na floresta, da floresta, mas com qualidade de vida. É um trabalho de valorização das mulheres, formação, valorização da cultura, fortalecimento do artesanato, que dá muito dinheiro para a nossa sobrevivência. Então, quero dizer que as mulheres tenham muita força e coragem para ocupar os espaços que podemos”, finaliza.

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