A praia que não vemos

Por Milton Chamarelli Filho

Estou numa praia, e você pode até achar que o que vou dizer, a seguir, é estranho. José Saramago escreveu que “precisamos sair da ilha para ver a ilha”, mas, se o autor português estava se referindo à linguagem, é impossível “sair da ilha” estando nela porque tudo o que percebemos, apreendemos a partir dela e da cultura que nos envolve e que nos enovela.  

Estamos vivendo, em total desequilíbrio, a trama e o drama de sermos autores e personagens das nossas vidas, e acredito que a grande crise existencial do homem do século XX e do início do século XXI seja exatamente essa. Vieram os grandes pensamentos descentralizadores, tais como os de Marx e Freud, e eles encontram na linguagem, como não poderia deixar de ser, a forma pela qual o homem é mostrado pelo seu avesso, como acontece com os conceitos de ‘ideologia’ e o de ‘inconsciente’. 

O capitalismo nos trouxe os meios de comunicação de massa e toda a influência que poderia nos sedar, pelos seus conteúdos, e que viriam aplacar a nossa curiosidade sobre pessoas e lugares ‘diferentes’. Depois, veio a internet e com ela o total reaparelhamento do telefone e a reconfiguração das redes sociais, que passaram a ter, com as novas tecnologias, alcances e funções quase que totalmente diversas das que tiveram no passado. Voltemos à praia.     

Nessa praia onde estou, noventa por cento dos adultos estão imersos em seus celulares, possivelmente interagindo em suas redes sociais, e eu penso — num adiantamento de um possível final dessa crônica — que eles não conseguem sair da ilha em que se colocaram, por dois motivos: 1°, não suportam uma ideologia diferente da sua; 2°, não tolerariam o ecoar da própria voz que vem em sua direção, de soslaio: o inconsciente. 

Saramago esboça na referida frase acima uma teoria da percepção do eu, até porque para ver esse outro universo do qual nos colocamos de fora, precisamos de outra perspectiva, aquela onde terapeutas sempre encontram uma brecha para ver e ouvir o outro sentido que se esconde e se espraia pela linguagem, insubmisso: os chistes, os atos falhos e os sonhos. Todos de uma lógica imprecisa para caber em uma rede social, não mensurável pelos algoritmos, ainda e ainda bem. 

Por que os banhistas não conseguem olhar a praia? Há um mar infinito, calmo, azul, que eles procuraram para ter um momento de descanso, um descanso mesmo dessas telas que os embevecem tal qual o murmurejar das ondas o faria, sem cobrar pelo seu olhar, pelo repouso que elas trazem. Talvez essa seja também uma espécie de “servidão voluntária”, teria dito Étienne de Laboétie; talvez seja, em outra dimensão, uma nova forma de síndrome de Estocolmo; talvez, ainda, a própria condição pela qual os acorrentados da caverna de Platão teriam querido ficar na caverna. 

Não quero transformar a oposição aqui colocada em uma dualidade de “apocalípticos e integrados”. Mas confesso que me preocupa que a dopamina passe por essa via one way dos telefones móveis e, sobretudo, das redes sociais. 

Conseguiremos sair da ilha? Acabo de checar uma das minhas redes sociais e vejo um meme que meu cunhado postou, diz ele: “Quando o telefone estava amarrado a um fio, as pessoas eram mais livres”. Esse quase trocadilho acaba por sustentar meu ponto de vista até aqui, mas não é tudo. Lembrando a etimologia da palavra ‘fármakos’, que em grego significa ao mesmo tempo ‘remédio’ e ‘veneno’, penso que a minha ilha de linguagem só me deixa chegar até aqui: a dose ‘certa’ para tudo é a da ponderação.    

Todo esse universo que as novas redes sociais nos propõem pode-nos parecer aprisionante, mas, ao mesmo tempo, não será também libertador?  A nova e antiga dopamina não será a forma de sermos notados, e isso não terá sido a forma de fugir de um mundo nuvioso e triste que tendemos cada vez mais a ignorar? Seremos então esses novos hedonistas em tempos tão sombrios? O tempo dirá.

*Milton Chamarelli Filho é professor titular da Universidade Federal do Acre (Ufac) e doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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