Por Milton Chamarelli Filho*
Ao estudar a conotação na fotografia (o que faz com que as imagens tenham mais de um significado), o teórico francês Roland Barthes afirmou que o oposto desse processo seria o “aquém da imagem”, o “trauma”, “o que suspende a linguagem e bloqueia a significação”. Barthes viveu em uma época em que a fotografia, sobretudo a de imprensa e a de publicidade, estavam caminhando vertiginosamente para o seu embelezamento, ou seja, para aquilo que poderia fazer dela mais do que uma simples mensagem ou o retrato fidedigno da realidade.
Esse tempo acabou e hoje observamos cada vez mais que o que deveria ser mostrado é silenciado: a dor humana. Não são meios de comunicação em si que o fazem, mas quem escolhe o que para ser mostrado, publicado. Essas “construções” nos deixam anestesiados porque parece que vivemos no “Show de Truman” 24 horas.
Devemos perscrutar a realidade e o melhor exercício para isso começa quando você se pergunta por que esse texto está aqui e não outro, por que essa imagem está aqui e não outra, ou por que há o silenciamento de tantos fatos?
Há muita dor no mundo real e talvez tudo o que nós queremos seja assistir todas as tragédias pela tela do nosso celular ou pela tela da nossa smart TV. Sim, é anestésico. Hoje, no Bom dia Brasil, dia 21/02/2022, um dos telejornais de maior audiência do período matutino, foi noticiado que um homem foi levado por um correnteza das águas de uma enchente. A matéria ficou nisso; nada além. As imagens, que agora são onipresentes, só mostravam ali o momento em que o homem afundou: nas telas, nos noticiários e na vida.
A pequena reportagem seguiu narrando outras consequências da enchente sem mencionar quem era o homem, o que ele fazia, onde seu corpo foi achado, se é que foi achado. Será que estamos tão anestesiados por uma espécie de “agulha hipodérmica” que devemos, por isso, surfar no “barato” psicodélico diante de uma realidade tão brutal?
Estamos assistindo a um aumento do número de casos de covid-19, pela sua variante Ômicron, e os telejornais não nos mostram mais as mesmas imagens que nos eram mostradas no início da pandemia. Não há nenhuma teoria da conspiração a ser defendida ou que esteja dissimulada aqui. Há apenas o alerta de que números nos entorpecem. Um fenômeno psíquico? Não dormíamos porque víamos ovelhinhas saltitantes nos nossos quase sonhos, mas porque as contávamos. E assim também os políticos o fazem quando querem mostrar suas conquistas nos seus mandatos. “Se eu olhar para a massa, eu nunca vou agir, se eu olhar para um indivíduo, eu vou agir”, disse Madre Teresa de Calcutá.
A historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz nos fala de como a gripe espanhola foi mostrada aos brasileiros pelo então jornal “A Careta” e outros, em 1918, tentando não transformar o “espetáculo da doença em um espetáculo silencioso”, mostrando imagens do mundo real do sofrimento da população. Não são como as apelações dos tradicionais e atuais noticiários da TV aberta, “do espreme e sai sangue”, como acontecia com alguns jornais “populares”.
Eram imagens que nos mostravam a realidade, sem maquiagens. Há um processo de silenciamento que deixa as vozes populares sufocadas, monofônicas. Esses silenciamentos são também pós-verdades porque podemos acreditar que o que prevalecerá, como resultado dessa observação, será a omissão do fato objetivo, em virtude mini the ends, minifinais felizes que têm como causa a falta dignidade com o ser humano. Não há também, nas redações dos jornais e telejornais, uma espécie de “inconsciente coletivo” em todo esse processo?
Porque ele deveria ser mostrado, em todas as suas circunstâncias, causas e consequências. Porque pela forma como nos foi apresentado, atropelado pelas imagens que o sucederam, ficamos achando que tudo acaba ali, naquela infinitesimal fração de segundo que é uma vida. Isso também não seria um preconceito estrutural, mas contra o próprio ser humano, uma vez que toda a enxurrada de acontecimentos midiáticos, nos quais estamos imersos e diante das quais estamos arrefecidos, nos diminui diante do que somos e, por isso, vamos nos perdendo cada vez mais de nós mesmos.
O apelo à não-emoção (?) — o homem mostrado no noticiário das enchentes de Minas — também desencadeia um efeito emocional “de suspensão da linguagem e dos significados”. Um vazio na mancha tipográfica. Passou, foi rápido; ele imergiu. Ele nunca mais aparecerá aos vossos olhos.
*Milton Chamarelli Filho é professor titular da Universidade Federal do Acre (Ufac) e doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo