Minhas “feridas narcísicas”

Por Milton Chamarelli Filho*

Impactei-me quando conheci o conceito de mais-valia, na minha juventude. Como boa parte dos jovens que têm contato com o materialismo histórico, acreditei e acredito que Marx pôde e pode explicar muitos fenômenos sociais podem puderam e podem ser explicados. O poder heurístico da filosofia de Marx nos leva, em um primeiro momento, a questionar a tudo e a todos, a identificar as desigualdades e, talvez por isso, é ainda uma fonte de inspiração de muitos jovens e um norte para quem desejou seguir os ideais de uma sociedade mais justa.

Não sei se alguém já escreveu sobre isso, mas ouso dizer que só compreendemos certas teorias quando estamos preparados para entendê-la, e só gostamos delas não porque elas nos explicam como o mundo é, mas de como ele se diz para nós. Não por acaso, ex-marxistas são hoje ferrenhos neoliberais, porque o seu grito contra a ordem das coisas era apenas um grito adolescente, gesto semelhante aos dos que usam uma camisa de Che Guevara, talvez ou por ele ter se tornado um ícone da liberdade jovem do final dos anos 1960.

Demorei muito a entender tudo isso, até porque estamos tão imersos na linguagem que, ao tentarmos colocar o nariz para fora dela, a sua porta vem e nos coloca de novo no ambiente abissal dos significados. O problema começa ou se coloca quando o signo se refrata na direção contrária daquela que você esperava, e o primeiro lugar que ele questiona é o seu. Na condição de signo ideológico, ele é a arena onde se trava a luta de classes (BAKHTIN) e essa, muitas vezes, se trava dentro de você.

O sentido das palavras da linguagem não é transparente; é opaco, escreveu Pêcheux, e é sob essa opacidade que repousam as nossas crenças e nossa ideologia. Essas crenças se materializam na língua e delas se constrói o mundo de significados que nos cerca, mas você demora para entender tudo isso… Tomei conhecimento com o tempo, por meio de um texto de Eni Orlandi, que cita o antropólogo norte-americano Clifford Guertz  “compreender é saber que o sentido pode ser outro” (GERTZ).

Talvez hoje isso tudo pareça muito natural, quando podemos ter acesso a tantos debates, pontos de vistas, etc. Talvez não, se “estamos discutindo de que borda da Terra plana vamos pular”, como disse a médica Luana Araújo, em depoimento à CPI. Com tempo — eu que só conhecia a opção dos dois bordos —, fui me descontruindo e conhecendo outros planetas, para continuar nessa metáfora espacial, que esbarravam na órbita do EGO, eu  que, até então, achara que o meu universo ainda se encontrava no sistema copernicano.

Ainda tento me desconstruir. Não é uma tarefa fácil, quiçá de uma vida, porque a todo tempo estamos nos deparando com as benesses do capitalismo, que é, ao mesmo tempo doce, sedutor e cruel; ele que te “dá” o conforto da luxuosa cama, mas esconde o tempo de trabalho do assalariado que a construiu; ele que te “dá” o carro caro e confortável, e que faz pensar que dar dois reais para o guardador de carros é muito. A propósito, Marilena Chauí disse certa vez que não tinha empregadas domésticas para não trazer a luta de classes para dentro da sua casa.

Nessas sinuosidades de pensamento percebo que a lógica do capital está nos meandros de cultura que se deixa permear por aquela lógica, que “naturaliza tudo o que é cultural”, como disse Barthes ao falar dos mitos da sociedade francesa, e é nesse momento que consigo entender a frase do teórico francês quando afirma que “mito é uma fala roubada” porque “ele transforma a história em natureza”, fazendo-nos acreditar que todas as construções ideológicas são naturais. E é aqui que começa o trabalho de uma semiótica, psicanálise e a teoria da ideologia, ao deixar aflorar os sentidos que fluem dos textos, dos textos das nossas vidas.

*Milton Chamarelli Filho é professor titular da Universidade Federal do Acre (Ufac) e doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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