A lei do retorno

    1. Por Leila Jalul*

Entrevistada por uma moça que fazia doutorado, me foi perguntado sobre onde nasci, idade, filiação etc. Vamos chamar de ficha técnica. Nasci no Acre, mas gostaria de ter nascido nas Rochosas. O calor daqui arrebenta com os meus fogachos.

Nem só por esta razão. Sempre fui medrosa, espantada, ouvidos sensíveis, pavor de cobra, de macaco gogó-de-sola, aranha caranguejeira, calango elétrico e briba, vulga “taruíra” ou “largatixa”. Tudo isso tinha de monte por aqui. Sem contar com as assombrações e fogos-fátuos nada raros de aparecerem.

As assombrações nem sempre eram de verdade. Vez por outra, o Duca, irmão da Dona Consuelo, resolvia fazer marmotagens na Floriano Peixoto, colocando uma capa preta fingindo ser visagem. Quase causa uma tragédia com ele mesmo. Por pouco não levou um tiro do Doutor Matoso, o boticão.

Nem por todo esse acumulado de problemas, deixei de gostar da minha casa e dos meus amigos. Não temia sair depois de escurecer. Nas cercanias, fui vendo, ouvindo e sentindo o passar dos dias, as meninas ficando moças, os meninos criando bigodes e engrossando a voz. Poucas ambições, muitos sonhos e desejos.

Na pauta, martelava a ideia de aprender violão. Aprender violão com o Professor Aníbal Brasil, o Dilermando Reis do Acre. Era o professor da Zilde, filha do Seu Sabino e da Marísia Castro, filha do Zé Fontenele mais a Dona Marieta Mapirunga. E cadê dinheiro para pagar o professor? Não me deram crédito, nem violão!

Tudo bem, pensei, tem gente que toca de ouvido, tem gente que toca por música, eu vou aprender de olho. E ficava ali, horas seguidas escutando Abismo de Rosas e a Marcha dos Marinheiros. No meu primeiro salário, um violão preto e verde. Aprendi pouco, mas sabia dar o tom.

Acontece que, nem preciso falar, instrumentos de corda e sopro atraem cobras. E eis que, num belo dia, depois dos exercícios noturnos, me aparece uma surucucu facão. Saiu de debaixo do sofá, fingindo que não me conhecia. Não deu outra. Fiz o escândalo.

– Pai, pelo amor de Deus, corre aqui. Uma cobra. É surucucu facão. Venha logo!

– Calma, minha filha, não tenha medo, uma cobra não morde a outra!

A bicha foi embora, sem nem olhar para trás.

Não muito tempo depois, Seu Manoelzinho, correndo para pegar de cinta meu irmão, cai certinho no canil de um vira-lata doido, chamado Tigre. Arrebentou-se todo, mordidas nas pernas, nos braços, um terror. Teve até que baixar no hospital.

Lá fui saber o que tinha acontecido. Deu pena de ver. Ainda na maca, voz de anjo, me diz:

– Veja, minha filha, que cachorro mais infeliz! Olhe o estado do seu pai.

Cuidei dele como devia, claro! Porém, não perdi a oportunidade.

– Pois é, papai, o senhor veja como são as coisas. Uma cobra não morde a outra, mas os cachorros, quando se estranham, fazem um estrago, né?

Leila Jalul é escritora, poeta e artista plástica acreana radicada em Porto Seguro (BA)

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