O poder da fé, da família e do pensamento crítico: a arte de ser humano

Os últimos dois livros que li foram impactantes, e chegaram às minhas mãos de maneira inusitada, escondidos numa prateleira de loja de departamentos, misturados a agendas e canetas. Comprei-os por curiosidade e para entender um pouco o momento em que vivemos.

Ambos foram escritos em meados do século XX e têm como pano de fundo a realidade distópica, caracterizada por uma sociedade imaginária controlada pelo Estado ou por outros meios de opressão, criando condições de vida insuportáveis aos indivíduos, idealizada em situações extremas da sociedade atual projetada no futuro.

Para sustentar os argumentos do título do artigo, dissertarei sobre ideias adquiridas a partir da leitura desses dois livros.  A primeira obra que devorei foi “Laranja Mecânica”, em que o protagonista e anti-herói Alex, amante da música clássica (principalmente Ludwig van Beethoven) e líder de uma gangue de delinquentes que roubam e estupram, cai nas mãos da polícia.

Preso, Alex é usado numa experiência chamada “Tratamento Ludovico”, criada pelo Estado e destinada a refrear os impulsos destrutivos dos delinquentes juvenis. Quando volta às ruas, regenerado, passa a sofrer com aqueles que antes eram suas vítimas. O famoso filme de Stanley Kubrick, feito nos anos 70, é fiel ao original do autor Anthony Burgess, ambos igualmente perturbadores, propondo reflexão para quem os lê ou assiste.

A outra obra é “1984”, escrita pelo britânico George Orwell e também adaptada para o cinema. O romance é ambientado no superestado fictício da Oceania, em um mundo de guerra perpétua, vigilância governamental onipresente e manipulação pública e histórica. Os habitantes são monitorados por um regime político totalitário eufemisticamente chamado de “Socialismo Inglês”, encurtado para “Socing” na “novilíngua”, a linguagem inventada pelo governo. O superestado está sob o controle da elite privilegiada do “Partido Interno”,  que persegue o individualismo e a liberdade de expressão como “crime de pensamento”, que é aplicado pela “Polícia do Pensamento”.

A tirania é ostensivamente supervisionada pelo Grande Irmão, o líder do partido, que goza de um intenso culto de personalidade, mas que talvez sequer exista. O protagonista da novela, Winston Smith, é membro do Partido Externo, que trabalha para o Ministério da Verdade, responsável pela propaganda e pelo revisionismo histórico.

Seu trabalho é reescrever artigos de jornais do passado, de modo que o registro histórico sempre apoie a ideologia do partido. Smith é um trabalhador diligente e habilidoso, mas odeia secretamente o partido e sonha com a rebelião contra o Grande Irmão.

 

Ao concluir essas duas obras-primas, confesso que tive a sensação de “ter meu mundo virado ao avesso’’ ou outro clichê qualquer que pensamos assim que lemos um livro engrandecedor e atemporal. Pude ter vários novos questionamentos acerca da vida, da realidade em que vivemos, do futuro da humanidade e outros pontos que sequer havia imaginado que existissem antes de ler esses romances.

Neles, percebi a importância do poder da fé, da família e do pensamento crítico como armas poderosas para o ser humano se defender de artimanhas da modernidade e toda sorte de infortúnios gerados pelo próprio homem. Por exeemplo, existe um estranhamento ao ver Alex, de Laranja Mecânica, recorrer à violência física e sexual gratuitas, num mundo dominado pelo ‘’socialismo perfeito’’, em que todos têm suas casas, vivem com conforto e sem problemas.

Exatamente por isso, por essa falta de estímulos, facilidades e uma sociedade majoritariamente materialista, entendi um pouco da fragilidade e do vazio existencial dos jovens dessa realidade distópica proposta por Burgess. Nesse futuro, Deus praticamente inexiste. Todos vivem apenas na base do “aqui e agora”, um carpe diem na prática, o que acaba por ajudar na destruição da base familiar.

Os pais de Alex aceitam passivamente suas transgressões, o fato de ele delinquir pelas noites de Londres, ouvir som alto, faltar às aulas e outros comportamentos reprováveis, ainda que tenha apenas treze anos no livro. Ao sair do tal Experimento Ludovico, em que sofre lavagem cerebral por duas semanas intermináveis, sua família simplesmente o substitui por “outro filho” – um sujeito de meia idade que não possuía lar.

O autor é representado na obra pelo escritor que tem sua casa invadida por Alex e sua turma, tendo sido espancado e obrigado a ver sua esposa ser violada sexualmente, episódio semelhante ao ocorrido com sua primeira mulher por soldados americanos nos anos 40. O escritor também produziu um livro intitulado Laranja Mecânica, o que ajuda a tornar a trama factível e profunda. Burgess, assim como o personagem escritor do livro, tenta explicar o valor do pensamento crítico, do direito inviolável que todo cidadão deve ter de pensar por conta própria e tomar suas próprias decisões.

A lavagem cerebral tira de Alex os impulsos para a perversão, mas ao mesmo tempo o transforma numa espécie de robô, guiado a fazer apenas tarefas úteis para o sistema e com diversos gatilhos que causam dores emocionais e físicas, como sua reação ao escutar música clássica. Ou seja, Alex não existe mais, sendo um autêntico morto-vivo.

Burgess, mesmo com a tragédia sofrida pela esposa, defende o direito do abusador de escolher entre a lei e a contraveção, o bem e o mal, tendo em vista que experimentos do tipo podem prejudicar severamente as pessoas, tanto no aspecto individual como coletivo.

Em 1984, os Estado é ainda mais forte, com a diferença de grande parte da população ser relegada à pobreza e sofrer racionamento de recursos contínuo. Não há leis ou regras, apenas a obediência total ao Grande Irmão e ao Partido Socialista. O protagonista, membro do partido, tenta aos poucos lutar contra a tirania, mas é torturado e abusado de formas distintas, até chegar ao ponto de não apenas desistir de ir contra o sistema, mas amar o Grande Irmão.

A infância de Winston foi pontuada por várias tragédias, a começar pela “vaporização” do pai, um dissidente do Socing, e a morte trágica da mãe e irmã, vítimas da inanição. Sem família e sem Deus, o solitário herói luta por princípios como verdade, justiça e liberdade, mas nem mesmo sua namorada, Júlia, é fiel a ele, traindo-o após uma seção de tortura. Aliás, ele também a trai.

Vemos nessas obras o quanto a estrutura familiar, a crença em Deus e liberdades individuais, como o pensamento crítico, são importantes para nos proteger de manipulações e, principalmente, evitarmos que tais circunstâncias, ainda que pareçam distantes e improváveis, possam acontecer.

Abaixo, o valor de cada um desses itens para o fortalecimento da essência do ser humano:

Base familiar

Atualmente, no Brasil, cerca de 5 milhões de crianças não possuem o nome do pai na certidão de nascimento. Fora que nas relações em que há pai e mãe, ou nas uniões homoafetivas, os responsáveis pelos filhos acabam por passar muito tempo tratando de carreiras e assuntos pessoais, deixando pouco espaço para o diálogo com as crianças. No âmbito matrimonial, além da dificuldade de manter o casamento, o afastamento sentimental é frequente com as diversas distrações do mundo moderno. A base familiar não precisa ser composta por virtudes exageradas, contato diário ou excesso de cuidados, mas propiciar o mínimo que a criança precise para se sentir confiante e lutar pelos seus ideais e protegida nas adversidades. Indivíduos isolados, sem base sentimental e acolhimento característicos da família, seja ela estruturada das mais diversas formas, são naturalmente mais suscetíveis à manipulação. Em momentos difíceis, por exemplo, é na família que temos acolhimento e o suporte necessário para superar as adversidades da vida. Em suma, a família, mesmo imperfeita e com paradoxos, nos torna mais fortes individualmente.

– Fé

Em Laranja Mecânica e 1984, vemos os rumos que uma sociedade materialista pode tomar. Como disse o escritor G.K Chesterton: “Quando se deixa de acreditar em Deus, passa-se a acreditar em qualquer coisa”. Isso quer dizer que a partir do momento em que o ser humano tem para si que Deus não existe, tendo ele nascido a partir de vários acasos cósmicos gerados desde o Big Bang há bilhões de anos, muitos absurdos podem ser facilmente absorvidos em sua mente. Ter fé não é necessariamente possuir uma religião, mas deixar florescer algo que nasce dentro de nós pelo nascimento, que é a perspectiva da crença em algo além da nossa compreensão física e mental. Quando abdicamos disso passamos a acreditar em outros deuses, como o “deus da ciência”, “deus sol”, “deus natureza” ou qualquer tipo de teorias certificadas por algum estudo de uma universidade renomada, sem qualquer contestação. Crer em Deus é ter humildade de reconhecer sua grandiosidade e ter consciência da volatilidade das situações da vida, dar sentido ao que é bom e ruim e ter para quem agradecer ou pedir nos momentos de dor.

– Pensamento crítico

A consciência é a principal característica que nos diferencia dos animais. Alguns deles, como ratos e macacos, possuem tantas semelhanças genéticas conosco que são usados como cobaias para testes de medicamentos e produtos utilizados pelo homem. Caso um cachorro ou elefante pudessem ter pensamento crítico, sem dúvida fariam rebeliões contra o sistema opressor humanoide. É esse pressuposto, tão importante para o ser humano, que foi tirado à força de Alex e Winston: a capacidade de ser. Sem o pensamento crítico não existe “eu” ou “nós”, perdemos totalmente a identidade. Vejamos Alex, por exemplo, que muda todos os hábitos por um “bem maior” imposto, que seria a aniquilação de seus desejos delinquentes. Mas, ao ativar as camadas profundas de seu cérebro pela repetição de ultraviolência na tela do cinema, que foi forçado a ver por horas a fio, todo seu comportamento foi alterado. Alex não era mais Alex, era outra pessoa ou coisa, e o mesmo se aplica a Winston, que mudou suas características após torturas severas. Outro ponto é a simples “reprodução orgânica” de conteúdos, em que simplesmente repassamos algo que ouvimos, vemos ou lemos sem a devida análise, tornando-nos alvos fáceis para grupos com objetivos escusos.

Portanto, o poder da fé, da família e do pensamento crítico é a arte de sermos humanos, as maiores dádivas que podemos ter, mas muitas vezes estamos distraídos demais para compreendê-las e executar esses preceitos com sabedoria.

 

Mauro Tavernard é jornalista na Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia do Acre

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