Shirimaku: o explorador – artigo de José Meirelles

A pedido de uma moça inquieta, uma tal Maria Meirelles, me arvoro a traçar o perfil de um rapaz com a mesma inquietude, deixando aqui registrado que os erros de avaliação devam a mim serem creditados. Afinal rotular o outro é negócio fácil e de risco. Pregar o rótulo é fácil. Se a cola for ruim o rótulo acaba pregado na sua própria testa.

Ele é do povo do Xinane e resolveu conhecer o nosso mundo estabelecendo o primeiro contato regular com índios Ashaninka e funcionários da Funai no verão de 2014. Foi o primeiro a receber do Fernando Ashaninka um cacho de bananas enquanto os outros três ficavam desconfiados a uma distância maior.

Depois de alguns dias de contato, na base do Xinane, foi o primeiro a entrar no helicóptero que transportava equipe médica e insumos. Foi difícil convencê-lo a deixar o banco do copiloto. Queria ir junto aos tripulantes passear naquela incrível máquina.

De outra feita, enquanto almoçávamos desceu ao porto, embarcou numa canoa algumas mulheres e crianças, ligou o motor e saiu a passear no rio. É claro que aventura não deu muito certo. Sem prática de dirigir a canoa ficou rodando no meio do rio e chocou-se no barranco de salão (piçarra) em frente à base. As mulheres caíram todas no fundo da canoa agarrada às crianças e ele no rio. Segurou na beira do barco e o motor ligado com a hélice a alguns centímetros de seus pés. Foi salvo pelos mateiros que caíram no rio e desligaram o motor.

Aprendeu a ligar o gerador de energia, as tomadas de luz e a ver se o voltímetro do gerador apontava pela marquinha vermelho dos 127 volts. Sempre observando e experimentando.

Foi o primeiro a falar na fonia da Funai e a imitar os funcionários: “Atenção, Rio Branco, é Envira!”.

Foi o primeiro a aprender, com este velho, a pescar de linha e anzol. Bom de surubim e jitubarana que só. Sempre que uma canoa deixava o porto, a qualquer pretexto, lá estava ele sentado no banco da frente já indicando o canal. Aprendeu a varejar antes de todos os outros.

Foi o primeiro a manter uma relação com uma índia Ashaninka, na tentativa de ter uma mulher. Passou um bom tempo com os Ashaninka da Aldeia Simpatia. Sua relação amorosa não deu muito certo. Algumas barreiras culturais são intransponíveis, em curto prazo, mas ele tentou.

Sempre que falávamos entre nós ele perguntava ao intérprete: “O que eles estão falando?”.

Foi o primeiro a gostar dos benefícios (ou malefícios) de um copo de água gelada. Quando ia à cozinha e pedia à nossa cozinheira: “Moça, idê (água)!”. Ela apontava o garrafão, ele balançava a cabeça negativamente e apontava a freezer.

Não é de se espantar que o planejamento de uma viagem de 500 quilômetros, rio abaixo, a varejão, rumo ao desconhecido, fosse ideia dele. Desconhecido no mais profundo significado do termo. Explicando: eles creem que quando morrem sua alma desce o Píxia (Rio Envira) até onde eles não conhecem mais e daí sobem para o céu. E lá se vai Shirimaku e seus rapazes rumo ao desconhecido no caminho das almas.

Na viagem encontrou a cidade de Feijó, “de onde os brancos vêm”.

Pessoas do calibre dele que nos tiraram das savanas africanas e nos espalharam por todo planeta.

Talvez ele volte, ultrapasse Feijó e vá à procura de onde as almas de seu povo voam para o céu.

 

José Carlos Meirelles é sertanista

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