Outubro de 1975. Nesse ano eu estava de volta ao Acre, após ter deixado Rio Branco em 1958, rios-Acre-Purus-Solimões-Amazonas-abaixo, no navio Sobral Santos. Fazia 17 anos desde aquela partida nostálgica, aos 19 de idade, sem imaginar que iria cantar tanto tempo em outras freguesias, como Belém, Macapá e Belo Horizonte, sem planos de retorno. Mas ali estava eu, com 36, um credencial de repórter regional de O Estado de S. Paulo e uma pauta prioritária para cobrir conflitos entre seringueiros e pecuaristas pela posse da terra.
O Acre de minhas memórias era território federal, mas tinha se transformado em estado com Assembleia Legislativa, Poder Judiciário, Tribunal de Contas, uma universidade federal… Só que o país vivia sob uma ditadura civil-militar desde 1964, tinha instaurado o bipartidarismo (Arena e PMDB) pelo Ato Institucional nº 2 e acabado com as eleições diretas, criando a figura do governador “biônico”. Encontrei no trono, ainda bem, o barão Geraldo Mesquita (Arena), um homem honrado que fora meu vizinho no passado, na Avenida Marechal Deodoro, no Conjunto Ipase, e pai do meu melhor amigo de infância e adolescência, José Henrique.
Essas referências que não valiam grande coisa na época, na nova situação, eu como repórter de um grande jornal do sul em tempos de ditadura, facilitavam o acesso ao dono do poder estadual que teria de procurar com frequência para ouvir o “outro lado” das denúncias de maus tratos e injustiças aos povos da floresta, de famílias expulsas pela frente pecuarista, a quem o regime oferecia vantagens em nome do “progresso” do Acre e da Amazônia em geral.
O clima na capital, na verdade, era tenso, ameaçava a quem, de algum modo, reclamasse direitos para os mais pobres e oprimidos. A Polícia Federal, que hoje é citada como paladino da justiça, vivia espionando e ameaçando “comunistas”, ou seja, pessoas que se opunham à política repressora do governo, federal ou estadual. A Polícia Militar também estava pronta para bater em militantes, membros da Igreja, líderes trabalhistas e comunitários, estudantes, políticos e jornalistas. Estavam todos na linha de tiro.
Cedo percebi que corria esse risco e que não devia exceder-me em debates ideológicos. Assim desarmado passei a frequentar a Assembleia Legislativa, principalmente, a partir de 1976, para conhecer os diferentes lados da política. Os deputados, tanto da Arena como do PMDB seguiam regras comedidas. Encontrei facilidade de conversa com o deputado Wildy Viana. Era um político que me parecia de direita em suas argumentações, mas tinha um lado humanista que o distinguia dos companheiros de bancada, como o Carlos Simão, que chegou a usar o grande expediente do legislativo, certa vez, para solicitar que o diretor da TV Acre, Tuffy Assmar, mandasse repetir a exibição de dois capítulos de uma novela que ele, Simão, tinha perdido.
Por reclamar contra essa tolice, numa crônica que o legendário editor Zé Leite publicou em O Rio Branco, na qual eu recomendava ao parlamentar que justificasse melhor o alto salário que recebia, Simão se irritou, voltou à tribuna e me acusou de subversivo. Com o Wildy Viana foi diferente. Abandonei pruridos ideológicos para reconhecer seus méritos e estabelecer uma amizade pautada no respeito às diferenças. Desde então, nos entendemos e posso dizer que nos tornamos amigos.
Em meados do ano passado, acompanhei uma equipe da Secretaria de Comunicação do Acre que foi gravar um depoimento dele em áudio e vídeo para o projeto de um museu acreano que está sendo montado. A jovem equipe, inesperadamente, deu-me o comando da tarefa e vi como o velho Wildy, aos 86, continuava lúcido, receptivo, antenado com a política e com a vida.
Ele, que começou sua trajetória política como vereador da UDN em Rio Branco, em 1963, depois optou pela Arena dos militares, de lá foi para o PDS, passando pela Assembleia Legislativa e Câmara Federal, elegeu-se sempre, mas parou de concorrer nos anos 80. Filiou-se ao PT e permaneceu sem mandato, certamente para ficar mais próximo dos filhos Jorge e Tião Viana, atuais senador e governador, líderes da Frente Popular do Acre no governo desde 1999, com êxito.
Não estranhei nem um pouco suas ideias atualizadas, porque estava diante de um político experiente e respeitado, um eterno professor e sempre aluno, na família e entre amigos, brincalhão, solidário, que achou seu melhor lado para defender a boa política, as boas causas públicas, sua terra e o meio ambiente. Enfim, eu estava naquela ocasião, sem saber, me despedindo de um acreano de muito valor que me deixou fecunda lição de acreanidade.
Elson Martins é jornalista