Seringal Macapá: o dia a dia de uma floresta habitada

Para adentrar uma comunidade da Floresta Amazônica pode-se usar barco, camionete, animais ou, simplesmente, os pés. Então o acelerado passo de seringueiro tem absoluta pertinência, pois o desafio é percorrer quatro horas para chegar em casa, em uma das primeiras colocações do Seringal Macapá. As passadas ligeiras, precisas e cheias de força superam os varadouros entre as matas, repletos de lama e espinhos.

Uma hora de caminhada no passo do seringueiro equivale, em média, a 6 km

(Fonte: Carlos Estevão Ferreira Castelo)

O dia passa e a vitória chega, mas a luta continua, pois a floresta não dá o abrigo e o alimento assim tão fácil. Cada passo é a busca de uma vida próspera, permeada de trabalho e conhecimento de realidades a quilômetros e quilômetros distantes das cidades. São mais de 200 famílias seguindo a luta histórica de viver em um ambiente que “considera o homem um intruso”, como definiu Euclides da Cunha em seu “Amazônia: terra sem história”.

Vana Ribeiro pode se considerar experiente nessa batalha, apesar de seus 21 anos. Nasceu, criou-se, casou e continua a viver em um seringal. Sabe muito bem que para a cidade não quer voltar,“meu negócio é no mato”, diz com o sorriso perene no rosto, enquanto prepara uma galinha caipira para o jantar.

O casal unido há um ano e meio busca os sonhos junto (Foto: Arison Jardim/Secom)
O casal unido há um ano e meio busca os sonhos junto (Foto: Arison Jardim/Secom)

A moça, estudante do ensino médio, nasceu no Seringal Espalha, vizinho da atual morada, ambos localizados no Riozinho do Rôla, no município de Rio Branco. Criada pelo avô, casou-se nova e seguiu com seu então marido para o Seringal Boa Vista, em Xapuri. De lá, Vana lembra com saudade das festividades de São João do Guarani, “esse ano não deu pra gente ir: como deve ter sido?”.

Há menos de dois anos Vana conheceu seu atual companheiro, Adriano dos Santos, de 28 anos. O casal experimentou viver na cidade, mas não se entusiasmou com a vida agitada e as luzes ofuscantes. Há três meses firmou residência na Colocação Bagé do Seringal Macapá e iniciou a realização dos seus sonhos.

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Francineide, da Colocação Parada

É com um sol radiante que Adriano e Vana despertam. Milho para os porcos e galinhas, sal para as poucas cabeças de gado e, no quebra-jejum (desjejum), bodó e café. “Agora o verão começou”, diz o jovem agroextrativista no batente de sua janela, já se preparando para o trabalho no roçado.

“Quero plantar milho, assim posso alimentar os porcos e as galinhas. É uma criação que vale a pena, cada galinha pode ser vendida a 20 reais”, diz Adriano, projetando um futuro promissor. “Na minha terra cabem cem cabeças de gado. Ainda, no inverno consigo 400 latas de castanha, macaxeira e farinha. A farinha está a um preço bom. E no verão talvez consiga mil litros de latéx”, diz.

No meio da mata, a seis horas de caminhada da cidade, com seu pedaço de terra Adriano deixa uma lição de autonomia valiosa para os tempos de crise: “Trabalhar assim é melhor que trabalhar para os outros”.

Nonato das Chagas voltou ao Seringal Macapá depois de uma passagem conturbada por Rio Branco (Foto: Arison Jardim/Secom)
Nonato das Chagas voltou ao Seringal Macapá depois de uma passagem conturbada por Rio Branco (Foto: Arison Jardim/Secom)

Cansado do desemprego e da bagunça da cidade, Nonato das Chagas, 43, voltou para o Seringal Macapá semana passada. Carregando de cavalo sua mudança, levou sete horas percorrendo 20 quilômetros desde o Km 58 da Estrada Transacreana até a colocação Santarém.

Nonato não é  um iniciante nesse meio, pois cresceu e viveu sempre em colocações distantes, trabalhando com seringa, castanha e pecuária, além do roçado. Atualmente residindo na propriedade de um casal de amigos, cheio de simpatia e relaxando no chão da varanda após uma manhã de pescaria, ele justifica sua felicidade: “Aqui tenho onde morar, tranquilidade e vou poder explorar a castanha pra mim”.

Pés na lama, livros na mão

O cotidiano não estaria completo sem as idas e vindas à escola. Uma geração cresce na floresta, tendo acesso ao ensino fundamental e médio, com os obstáculos típicos da Amazônia.

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Erisvaldo de Souza usa seu cavalo para ir a aula e também para o trabalho (Foto: Arison Jardim/Secom)

Nos fins de semana o rapaz joga futebol com os amigos ou ajuda o pai na criação de gado e no roçado. No último domingo não teve “brincadeira de bola” (sic), pois foi ajudar a “puxar” (sic) alguns bois de um pasto para outro. “Esse cavalo tá muito cansado, trabalhou muito ontem à noite”, avalia, mostrando-se preocupado com o animal que o leva diariamente pra os estudos.Andar três horas a cavalo para estudar física é a missão dessa semana para os alunos do ensino médio. Erisvaldo de Souza, 18, está no 3º ano. Durante a semana acorda às cinco da manhã e parte com uma tarefa a cumprir: chegar ao seu destino antes do início da aula, às 8 horas.

Moradores se reunem para buscar a merenda escolar. São necessários dois bois e três horas de viagem até o início do seringal

“Eu incentivo muito meus sobrinhos a estudarem”, diz o professor Antônio de Souza, o Novinho. E ele sabe muito bem o quanto vale a pena lutar pelos estudos. Após 15 anos vivendo no Seringal Macapá, foi pra “rua” (a cidade, no caso, Rio Branco) iniciar os estudos. Hoje com 34 anos, dois após concluir o ensino médio, realizou o sonho de voltar para suas origens e dar aula para 11 alunos do ensino fundamental.

As crianças começam a estudar aos cinco anos, se aguentarem andar no varadouro. O primeiro passo é se livrar da lama, se lavar pra começar a estudar.

O entusiasmo de Novinho tem uma razão legítima: “Quando estes alunos chegarem mais à frente, em Rio Branco, vão ter o que contar da sua história, da sua origem, ter orgulho de onde vieram: ‘Eu vim do seringal!”.

Novinho cresceu no Seringal Macapá, e depois de terminar os estudos na cidade de Rio Branco, aos 32 anos, voltou ao seringal para dar aulas (Foto: Arison Jardim/Secom)
Novinho cresceu no Seringal Macapá, e depois de terminar os estudos na cidade de Rio Branco, aos 32 anos, voltou ao seringal para dar aulas (Foto: Arison Jardim/Secom)

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