“Eu e meu irmão mais novo tínhamos uma canoinha e passávamos a tarde brincando no igarapé nos fundos da casa. A floresta me parecia um lugar acolhedor, bonito e cheio de aventura. Meu pai e minha mãe trabalhavam muito, mas reinava um clima de satisfação com a vida. Era tudo tão agradável, a família, o relacionamento amistoso com os vizinhos de colocação, as festas… Viver no seringal era algo inexplicável. Até hoje aquelas imagens estão revestidas de ternura na minha lembrança”, relata Elson Martins da Silveira, 73 anos, um dos jornalistas mais importantes da história do Acre.
Aos dez anos de idade, entretanto, o menino foi levado do seu paraíso, o Seringal Nova Olinda, e do convívio familiar. Enquanto descia o Rio Iaco, em direção a Sena Madureira para estudar, sentia seu coração se rasgando de dor por se apartar de tudo o que conhecia como vida. O fato representou um choque emocional imenso para a criança.
Primeiro em Sena e depois Rio Branco, onde cursou os anos fundamentais, Elson se deparou com uma nova realidade, uma opinião bem diferente sobre o seu velho e bom mundo: para o povo urbano, o seringal era um lugar atrasado, de gente ignorante. Ali, “seringueiro” era um termo pejorativo, pronunciado para ofender o outro. Com isso, toda a sua bagagem de vida tornava-se ruim e inútil.
Essa pressão fez com que ele desejasse se livrar da pecha de inferior e conhecer mundos mais “adiantados”. Quando concluiu o primeiro ano do científico (atual ensino médio) no Colégio Acreano, como primeiro aluno da classe, ganhou uma viagem para Belém. De lá foi para Macapá, onde continuou os estudos, e então para Belo Horizonte, em 1963. Na capital mineira iniciou faculdades de Belas Artes e Cinema e também deu seus primeiros passos no jornalismo.
Com a realidade política desencadeada pela ditadura militar, começou a se inteirar das primeiras lições de socialismo e, em 69, foi enviado para um aparelho da ALN (Aliança Libertadora Nacional), em Belém.
Elson entendia a necessidade de resistir diante da opressão social, mas não se identificava com os princípios da guerrilha. Quando foi pressionado a pegar em armas, reagiu: “Eu quero liberdade sim, mas não para ferir e matar. Quero namorar, ter amigos, ter família e viver feliz. É essa a liberdade que eu quero”. Evidentemente, foi considerado pelos militantes um ingênuo irrecuperável e expulso do aparelho.
Entre idas e vindas a Belém e Macapá, foi preso por suas atividades políticas. Solto, casou-se, teve filhos. Que viriam a ser cinco: Vássia, Tissiano, Cameni, Iaco e Yasmim. Também nessa época e se aproximou de João Capiberibe, atual senador da República pelo Amapá.
Foi Lúcio Flávio Pinto, renomado jornalista especializado em Amazônia, que o convidou para ser correspondente do jornal O Estado de S. Paulo em Macapá. A seguir, em 75, foi enviado de volta para o Acre, para cobrir conflitos de terra. “Tive muita sorte no jornalismo. Eu sempre estava próximo de onde as coisas aconteciam”, reconhece.
Era a época de maior desmatamento no estado, com chegada dos fazendeiros do sul e sudeste, o que gerava enorme tensão com os seringueiros, que se viam alijados do seu modo de vida, pressionados e expulsos pelos novos donos da terra. Elson se envolveu completamente com a causa: “Nunca abri mão de lidar com a emoção. Chorei com seringueiros ao ver áreas desmatadas. E quanto mais eu cobria esses eventos, mais eu queria voltar às minhas origens.”
No mesmo ano conheceu o líder dos seringueiros Wilson Pinheiro. Meses depois, durante a criação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia, chamou-lhe a atenção o comportamento suspeito de um rapaz que ia de mesa em mesa conversando com os seringueiros, demonstrando grande interesse na questão. Talvez fosse espião dos fazendeiros, pensaram Elson e João Maia, delegado regional da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), responsável pela fundação de oito sindicatos no estado. Ao longo das horas, no entanto, perceberam que o envolvimento do moço era positivo, que ele estava ajudando os trabalhadores a preencherem as fichas de filiação. Seu nome: Chico Mendes.
A partir daí tornaram-se “parceiros ideológicos”. E assim define o amigo: “Chico foi extraordinário. Honesto, motivado, sua ambição era ser útil ao povo do seringal. Era verdadeiro, simples e deu a vida à sua gente”. Como correspondente do Estadão no Acre, Elson teve a honra de ser o primeiro jornalista a lançar o nome de Chico Mendes na imprensa nacional.
Entre maio de 77 e dezembro de 81, Elson e Silvio Martinello tiveram a iniciativa de fundar aquele que seria o maior fenômeno editorial do Acre até hoje: o jornal Varadouro, “a voz das selvas”. A começar pelo nome, que faz referência a caminhos abertos na floresta, a publicação já mostrava sua vocação de promover a acreanidade.
Foram 24 números que venderam, a cada tiragem, de cinco a sete mil exemplares, na rua. A saída era imediata. “Para se ter ideia do que o Varadouro significou, em termos de receptividade popular, basta dizer que hoje, quando a população de Rio Branco mais que triplicou em relação àquela época, quando éramos cem mil, a soma da tiragem diária de todos os jornais da capital não chega a dois mil.”
Elson credita esse sucesso à grande efervescência social e cultural no estado naquele momento. “Havia uma notável mobilização popular na cidade e na floresta. A questão fundamental era a resistência ao desmatamento, à expulsão das famílias estabelecidas nos seringais, ato que gera consequências graves também na cidade, como miséria, alcoolismo e prostituição. E o pior é que essa violência era realizada com todo o aparato de proteção do governo militar. Mas a população reagia por meio dos sindicatos, das mais de 500 comunidades eclesiais de base que existiam e dos movimentos sociais. Era incrível como o povo do Acre estava empatando o capital de se estabelecer em suas terras”, relata.
O Varadouro era feito por universitários, militantes políticos, agentes comunitários, com reunião de pauta aberta à comunidade. Tornou-se uma espécie de centro de defesa dos direitos humanos. Os temas do jornal eram de interesse direto das pessoas. “Hoje os repórteres percorrem blogs em vez de percorrerem a cidade”, lamenta.
A iniciativa logo ficou conhecida em todo o país e já no número 5 publicou carta do cartunista Henfil, que se dizia “emocionado” por conhecer um jornal que não tinha “cheiro” de São Paulo nem do Rio de Janeiro, mas do Acre, e esperava receber as próximas edições do jornal “impressas em folha de seringueira”.
Confira aqui a edição do Varadouro número 5
Em 1977, ao participar de uma reportagem sobre os privilégios dos funcionários públicos, Elson recebeu, junto com Ricardo Kotscho, que redigiu o texto final, e outro repórter, o Prêmio Esso de Jornalismo. “Ninguém falava que o governo militar era corrupto”, afirma.
Essa premiação e muitos outros fatos são desconhecidos de muita gente, dado o comportamento nada falastrão de Elson. Mas, quando abordado, mostra ocorrências, em sua biografia, de fazer inveja a muito jornalista.
Em 1983, por exemplo, foi convidado pela Novosti, agência da comunicação oficial soviética, a conhecer a então URSS, que estava iniciando a Perestroika. Durante 14 dias, entre Moscou, Lenigrado (atual São Petersburgo), Lituânia e Estônia, descobriu um povo caloroso e disciplinado. Ao longo da viagem, teve uma oportunidade rara: conversou, durante duas horas, com a primeira mulher astronauta do mundo, Valentina Tereshkova. “Fiquei encantado com sua beleza, simpatia e espírito de solidariedade”, lembra.
Elson foi também, durante alguns anos, sócio de Martinello no jornal A Gazeta, de Rio Branco. Depois foi diretor da TV Aldeia e, ainda, retornando a Macapá, editor da Folha do Amapá.
Em 2008, recebeu o Prêmio Chico Mendes de Florestania, do governo do Estado do Acre. Em 2011, junto a representantes de legendárias publicações como Pasquim, Opinião, Movimento e Lampião, foi homenageado pelo Instituto Wladimir Herzog, por participar ativamente da imprensa alternativa do país durante o regime militar.
Na semana passada, foi convidado a emprestar seu nome ao centro acadêmico do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre (Ufac), o Caemm. “Fui recebido com muito carinho e respeito. Quem sabe essa moçada não faz algo interessante?”, anima-se.
E dá uma dica: “Se eu fosse montar um jornal agora, faria uma publicação atraente sobre a cultura da floresta, porque é rico ver o quanto as pessoas que moram lá se sentem bem e à vontade. Isso é notícia. O que há de novidade no resto? Você pode encontrar tudo no Google. Mas aqui é um lugar inexplorado, tanto do ponto de vista da riqueza da natureza quanto das pessoas e dos modos de vida.”
Sobre o Acre e Amazônia, Elson tem um acervo riquíssimo em sua biblioteca: livros, jornais, fotos, filmes e todos os seus 200 blocos de anotações das reportagens. Em meio a tanto material, faz uma oferta generosa: “Eu queria que o governo do Estado pudesse absorver estes documentos, que os organizasse e colocasse à disposição da população, pois aqui está registrado um pedaço da nossa história”.
E, exatamente pela qualidade dos serviços prestados à sua terra, nesta sexta, 21, Elson Martins receberá a mais alta honraria concedida pela Prefeitura de Rio Branco a seus filhos ilustres: a Comenda Empreza.
Assim, o mestre expõe os seus princípios: “Não separo o meu trabalho da minha origem seringueira. Eu me sinto realizado profissionalmente por ter conhecido outras culturas e ter percebido, em decorrência disso, o valor da minha própria cultura. Os seringueiros e ribeirinhos são pessoas sábias. Nestes últimos anos, estou aprofundando minha viagem de retorno ao seringal. Com minha cultura encolhidinha, simples e invisível, dou um salto para a modernidade. Deste particular onde estou, enxergo o universal.”