Brava Gente – O livro aberto de Antônio Marcos

 

{xtypo_quote}Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, acorda.

Carl Jung{/xtypo_quote}

Quando os alunos da Escola Terezinha Miguéis, em Rio Branco, vão à biblioteca da instituição fazer pesquisas, apenas apresentam o assunto para o bibliotecário Antônio Marcos. Ele sabe exatamente onde procurar o que precisam. Dirige-se à prateleira correspondente, pega o livro e entrega aberto na página onde está abordado o tema.

Antônio Marcos conhece a biblioteca onde trabalha como a palma de sua mão (Foto: Arison Jardim/Secom)

Antônio Marcos conhece a biblioteca onde trabalha como a palma de sua mão (Foto: Arison Jardim/Secom)

Até aí tudo aparentemente normal. Apenas por um detalhe deixa de ser: Antônio Marcos é quase totalmente cego. Tem apenas sete por cento da visão do olho esquerdo.

A deficiência é congênita. A mãe havia adquirido leptospirose e o bebê se contaminou na hora do parto. Não bastasse, desenvolveu glaucoma durante a infância. Dessa época, lembra que tinha dores de cabeça fortíssimas e que chorava muito.

Mas também tem recordações felizes dos primeiros anos: a vida em família, a vizinhança amiga e, especialmente, os banhos no Rio Acre com os irmãos, enquanto a mãe lavava roupa. Nadava, brincava, pescava. E carrega um testemunho ambiental que provoca saudades: “O rio sempre foi barrento, mas não tinha o mau cheiro que tem hoje”, relata.

Se entre os conhecidos Antônio foi acolhido, quando entrou na escola, entretanto, a coisa mudou de figura. Os professores não eram nem minimamente qualificados para recebê-lo ou transmitir conhecimentos. O menino passava a maior parte do tempo debruçado sobre a carteira, entediado. Os colegas o discriminavam e isolavam, insultavam-no, agrediam-no moral e fisicamente. Enraivecido, ele reagia batendo pesado. E, por isso, mais de uma vez sofreu expulsão da escola. Incompreendido e excluído, Antônio experimentava a dor do preconceito.

O sofrimento se perpetuou até os 17 anos, quando conheceu o Centro de Atendimento ao Deficiente Visual (antigo CADV, atual CAP Acre). Ali, aprendeu o código braille e a orientação em movimento, uma técnica especial para se situar e se mover no espaço. Apropriando-se de novas possibilidades, sua vida começou a se transformar.

Pôde voltar à  escola e recuperar conteúdos. Cláudio Augusto Sales, então diretor da Escola Heloísa Mourão Marques, fez questão de recebê-lo, atitude à qual Antônio é grato até hoje. “Muitas pessoas de boa vontade já me ajudaram”, reconhece. Mas sua rotina diária não era fácil. Primeiro, gravava as aulas em fitas cassete; em casa, ouvia e respondia em braille; depois, entregava à professora Maria Dulcina Sales, a quem ele ensinou o braille. Ela transcrevia para a escrita convencional e só então o dever do rapaz estava pronto.

Como se vê, as provas eram árduas, mas ele sempre conseguiu encontrar quem o ajudasse. O esforço também não foi vão, pois, por meio dele, Antônio adquiriu habilidades especiais. Sua memória teve um desenvolvimento excepcional. Daí que tem a capacidade de arquivar mentalmente muitos dados. E é apaixonado por História e filmes épicos. Também tem uma percepção privilegiada das pessoas com quem faz contato. Sente-as pela voz e pela presença.

Depois de concluir o ensino médio, Antônio Marcos recebeu uma oferta de fazer um curso no Instituto Benjamim Constant, tradicional instituição de ensino para deficientes visuais, no Rio de Janeiro. Aceitou e encarou três dias de viagem de ônibus, sozinho. Ou melhor: “Eu e Deus”, como diz.

Aproveitando a estada na capital carioca, conheceu a Biblioteca Nacional, que é a maior da América Latina e a sétima maior do mundo. Encantou-se com o ambiente, ficou amigo dos bibliotecários e eles lhe ensinaram como catalogar livros, como acomodá-los e toda a rotina da biblioteca. E, após seis meses de mergulho em tantos conhecimentos, Antônio Marcos voltou para Rio Branco renovado e confiante. Foi quando se lançou ao ofício de bibliotecário.

"Com o amor, você faz a superação dos seus problemas", diz o bibliotecário (Foto: Arison Jardim/Secom)

“Com o amor, você faz a superação dos seus problemas”, diz o bibliotecário (Foto: Arison Jardim/Secom)

E o melhor de tudo é  que, hoje, quando os estudantes o procuram, não querem apenas ajuda para os trabalhos escolares, mas também sua amizade. “Em geral, os jovens se sentem muito sozinhos, sem atenção dos pais. Eu os ouço e dou conselhos”, diz esse homem que sabe o valor da solidariedade humana.

Aos 37 anos, Antônio Marcos de Lima Mamed é funcionário público concursado. Ama o saber e os livros. Amor do qual que ele teve notícia aos oito anos de idade, quando passava em frente à porta da biblioteca de sua escola. Por um momento, pareceu-lhe que o tempo parava, como se tudo estivesse encantado. Foi então que ele ouviu: “Um dia você vai trabalhar num lugar assim”. E a promessa se cumpriu.

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Quem foi Louis Braille?

O francês Louis Braille (1809-1852) foi o criador do sistema de leitura para cegos que recebeu seu nome, braille. Aos três anos de idade, provavelmente ao brincar na oficina do pai, que era fabricante de arreios e selas, Louis feriu-se no olho esquerdo com uma ferramenta pontiaguda. Uma infecção se seguiu ao ferimento e alastrou-se para o olho direito, provocando cegueira total.

Na tentativa de que Louis tivesse uma vida o mais normal possível, os pais o matricularam na escola local. Louis tinha enorme facilidade em aprender o que ouvia e muitas vezes foi escolhido como líder da turma. Com 10 anos de idade, ganhou uma bolsa do Instituto Real de Jovens Cegos de Paris.

Com apenas 15 anos, Braille terminou o seu sistema de células com seis pontos. O novo código só foi adotado oficialmente em 1854, dois anos após a morte de Braille.{/xtypo_rounded2}

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