Antonio Ezequiel era uma criança do seringal, como tantas outras no Acre. Mas, aos oito anos de idade, seu destino atraiu uma fatalidade que marcaria profundamente sua história.
Certo dia, no exato momento em que ajudava a mãe mexendo o mingau de milho na panela, o assoalho cedeu. Caiu o menino, caiu a panela com o mingau fervendo sobre ele e também a estrutura do fogão de barro por cima de tudo.
Da colocação onde morava até Tarauacá, três dias de viagem. Suas pernas, seriamente afetadas pela queimadura, infeccionaram muito. Era o começo de um longo martírio.
Ficou quatro anos na cidade, tratando os ferimentos, que resistiam em cicatrizar. No auge da vitalidade humana, Ezequiel tinha que ficar sempre deitado, movendo-se apenas com a ajuda dos outros. Às vezes, sozinho em casa, passava sede durante horas, sem ninguém para lhe alcançar um copo d’água. E a infecção não cedia. Foi necessário buscar tratamento em Rio Branco. Entretanto, os pais não podiam acompanhá-lo. E o menino, desesperado com o suplício físico e emocional que atravessava, decidiu viajar sozinho.
Foi assim pressionado pelas circunstâncias da vida, que Antonio Ezequiel Evangelista de Mesquita deu adeus à infância. Bem antes do tempo, precisou tornar-se homem grande para poder cuidar de si próprio e se defender do sofrimento.
Na capital acreana, passava mais tempo internado no antigo Hospital de Base que hospedado na casa do tio que o recebeu. E encarou outros quatro anos de tratamento. Sem resultado.
Então foi para Goiânia. E, passados, portanto, oito anos do acidente, a solução encontrada para a infecção tornada crônica e profunda foi a amputação da perna esquerda.
A carga de dor sobre Ezequiel já era tamanha que ele aceitou de bom grado essa alternativa extrema, que representava sua possibilidade de libertação. Após 16 dias da intervenção, conseguia se locomover sozinho, com ajuda de muletas. Começou a respirar aliviado. Pois já conhecera no fundo de sua alma o que significava a liberdade de ir e vir.
Voltou para Rio Branco e começou a se adaptar à nova vida. Iniciou o trabalho de guardador e lavador de carros na Rua Fausto Robalo, no Centro, próximo ao quartel da Polícia Militar. Está há 14 anos naquele ponto. É bastante conhecido pelos moradores e pelas pessoas que trabalham nas imediações. As referências que se colhem a respeito dele são muito positivas: “O Ezequiel é uma pessoa boa, de confiança, que nós conhecemos há mais de dez anos. Trabalha aí na rua, olhando e lavando os carros, cuida da nossa casa, vigia quando viajamos e também faz serviços externos para nós”, assegura Elisabeth Bezerra de Faria, moradora da Fausto Robalo.
De segunda a sexta-feira, Ezequiel sai de casa cedo e, das sete da manhã às duas da tarde, cuida do seu serviço. Chega a lavar até seis carros no período. Quem passa na travessa nessas horas vê o rapaz, nos verões e invernos amazônicos, carregando baldes d’água e lavando os carros da sua clientela: com uma perna só, de muletas, pra cá e pra lá, levantando-se e abaixando-se pra dar conta do recado. “Muita gente não trabalha. Eu prefiro estar aqui. Que pegue sol ou pegue chuva, pelo menos tô trabalhando”, diz esse incrível Ezequiel, homem de fibra e de princípios.
Outro fator que chama a atenção na conversa com o rapaz é sua expressão de bondade, seu olhar manso. Enquanto tanta gente se revolta e se amarga com as lições muito duras que a vida às vezes traz, ele não reclama, não julga e não protesta sua sorte. Apenas aceita e faz o melhor que pode com o que tem. E, se as posses são modestas, a sabedoria transborda: “Eu acho minha vida boa. Já sofri tanto… Agora tá tudo bem. Tenho trabalho, tenho amigos”. E tem até a Maria José, sua companheira.
Seu sonho é ter uma casa própria, e, no seu ritmo, busca realizá-lo. Sobre a distribuição de casas populares, ele tem uma visão altruísta: “Eu acho certo o governo dar prioridade a quem tem filhos. Quem tem criança precisa mais do que eu.” E, assim com essa nobreza, ele nos comove, quando não encabula.
Sobre religião, sua opinião é ecumênica e inclusiva: “Acho errado as pessoas de uma religião falarem mal de outra. O meu Deus é o teu Deus, Deus é um só”, ensina, para quem puder escutar.
Sob as palavras de Ezequiel, paira uma aura de serenidade. É o prêmio que conquistam apenas aqueles que mergulham dentro de si próprios, enfrentam seus fantasmas e, enfim, aprendem a dar valor ao que tem valor.