Macaxeira com leite de vaca, cuscuz com torresmo, cuscuz com sarapatel, farofa de ovo, café, caju, abacaxi, mel, doce de mamão… Era esse o “quebra-jejum” da menina Neurides, quando morava em uma colônia em Xapuri, há algumas décadas. A lembrança faz sua boca se encher d’água.
Também a sua alma saliva quando recorda a infância feliz, cheia de brincadeiras e envolta num ambiente natural – um luxo desconhecido para as crianças de hoje, cada vez mais envolvidas com o cyberespaço e desconectadas de si próprias.
Mas viver exigia muito trabalho. Ficou gravado na formação da criança o esforço do pai, agricultor, e da mãe, em dupla jornada, para criar os 12 filhos.
“O pequeno produtor sofre muito. Está distante, não tem muitos recursos e seu acesso a benefícios é reduzido. Sua mulher sofre ainda mais, pois além de trabalhar na roça, tem as tarefas domésticas: cuidar dos filhos, da casa, amamentar, lavar, costurar, criar galinhas… Eu me lembro da minha mãe. Acordava antes de todos e era a última a se deitar”, narra, entre suspiros, a educadora e radialista Neurides de Barros.
É natural que essa acreana tenha trabalhado desde 1971 em órgãos federais e estaduais com a extensão rural, um conceito que visa levar informações e melhorar a qualidade de vida dos moradores do campo. Trabalhou durante anos assistindo essa população, proferindo palestras sobre alimentação, saúde, higiene, dando dicas de produção e fazendo as vezes de assistente social.
“Quando nossa equipe ia a campo, constatávamos que muitas famílias da roça não tinham a noção de que a lama que se formava embaixo do jirau era um foco de contaminação. Orientávamos que fizessem uma bica com folha de alumínio para que a água pudesse correr para um local distante da casa”, relata. Com o passar dos anos, Neurides foi se tornando conhecida pela comunidade rural do Acre.
Em especial, o universo feminino sempre pôde contar com sua atenção. Nessa relação, trocou conhecimentos e ensinou a confecção de artesanato. Soube enxergar, na tarefa, algo muito além da mera produção de um bem material: “Quando a mulher faz um colar, quando escolhe as peças e define os arranjos, está contando sua história”, explica.
E, por falar em história, Neurides tem muitas, e engraçadas, que narra com voz macia, intercalada de gargalhadas fartas e gostosas de ouvir. Lembra, por exemplo, que, como medida de saneamento, aconselhava as famílias a construírem privadas higiênicas. E, normalmente, as pessoas acolhiam a ideia. Até o dia em que chegou, com a equipe, numa colônia de conhecidos e foi perguntando sobre “a casinha”. Ao que a dona de casa respondeu, prontamente:
– Já fizemos, sim. A gente tava esperando vocês pra inaugurar.
E tem também aquela da família que ela acompanhava há algum tempo. Um dia ensinou o método contraceptivo da tabelinha à mulher, para ao menos aumentar o tempo entre as gestações, que eram muito seguidas. Ocorreu que, num dos dias “proibidos”, o marido, todo animadinho, recebeu uma negativa da esposa, junto com a devida explicação. Ele não ficou exatamente contente. Quando Neurides apareceu de novo na propriedade, o homem foi logo tomar satisfação:
– Quer dizer que a senhora chega aqui, manda fazer privada, manda fazer horta e até nas intimidades já tá querendo mandar? Pois fique sabendo que eu vou reclamar pro seu chefe!
Entre as anedotas do cotidiano, porém, seu batente era exaustivo. Casada, com três filhos, após a jornada de trabalho ainda estudava à noite. Ficava dias sem conviver com as crianças: “Eu saía cedo, elas dormindo. Voltava tarde, elas dormindo.” Até que se formou em pedagogia.
Mais recentemente, veio um capítulo difícil de sua biografia. Foi quando o cigarro, companheiro antigo, deixou-lhe sequelas dolorosas. Há alguns anos, sua perna esquerda começou a doer e os dedos foram ficando roxos. Os sintomas foram interpretados como resultado da ação de fungos. O diagnóstico redondamente errado escondeu uma situação muito mais delicada, que o tempo transcorrido só fez agravar. Finalmente foi identificada uma trombose e, numa batalha desgastante, Neurides enfrentou cinco cirurgias. Entretanto, seu estado foi ficando mais crítico e, há dois anos, para preservar-lhe a vida, a perna teve que ser amputada.
Um golpe cruel para qualquer ser humano. Ela ainda se recompõe, tanto física quanto moralmente. Quando reflete sobre o que lhe ocorreu, lágrimas cheias de dor emergem. Ao ouvinte, desconcertado diante de seu drama, resta o sentimento de solidariedade tão bem descrito no livro “Não apresse o rio, ele corre sozinho”, best-seller da terapeuta Barry Stevens nos anos 70: “Posso ver o seu arranhão, não posso sentir a sua dor”.
Assim ferida, a guerreira vai fazendo sua adaptação a uma prótese. Além de usar muleta, só caminha amparada por outra pessoa. Aquela que sempre foi tão ativa, agora se vê angustiada com o grau de dependência a que está submetida. Por isso, enquanto aguarda uma liberação de TFD (Tratamento Fora de Domicílio), suspira por um processo de reabilitação no Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília, um dos melhores do mundo, onde poderá reaprender a se locomover sozinha e dirigir automóvel.
Apesar da dificuldade, ainda faz do humor seu grande trunfo. Brinca, dizendo que namora vários rapazes, “mas eles não sabem”. Faz graça para as colegas de trabalho, dizendo que está “passando o pano”, como define o ato de olhar de longe seu “eleitorado”. E Aldenir, o marido, vai bem, obrigada.
Não parou de trabalhar. Com a nova realidade, Neurides se tornou radialista e agora apresenta o programa “Raízes da Terra” produzido pela Seaprof (Secretaria Estadual de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar), que vai ao ar todos os domingos, às sete da manhã, pela Rádio Difusora Acreana. Ali, emprega toda a vasta experiência que adquiriu no ruralismo e dá seu recado com muita personalidade. Com sua voz jovial, atinge seu público cativo e manda abraços, oferece músicas, parabeniza os aniversariantes da semana, dá receitas e dicas de produção. Em Xapuri, tem uma ouvinte muito exigente: dona Constância Ferreira de Barros, 90 anos, sua mãe. “Ai de mim se eu me esquecer de mandar um alô para ela…”, diverte-se.
Seja com informações, seja como uma companhia bem-humorada, a comunicadora se sente gratificada com a contribuição que faz ao mundo: “É muito bom sentir que o que você leva até alguém ajuda a sua vida a ser melhor”, diz.
E acalenta sonhos. Um deles? Voltar a dançar. Neurides de Barros, 63 anos, não desistiu de ser feliz.