Homens e mulheres, jovens e crianças, famílias inteiras que já não tinham esperança de uma vida melhor e passaram a planejar um futuro diferente
Quem trafega nos 672 quilômetros da BR-364, no trajeto que liga a capital do Acre, Rio Branco, a Cruzeiro do Sul, a segunda maior cidade do Estado, sabe da importância dessa rodovia para a integração e desenvolvimento do Acre. Sabe o que ela significa para as cidades que atravessa e sabe das dificuldades e desafios para construí-la. Mas são poucos os que conhecem o que ela realmente representa para aqueles cidadãos anônimos que vivem às suas margens. A estrada trouxe qualidade de vida e, com ela, a cidadania e a garantia de um dos direitos mais fundamentais do homem, que é o direito de ir e vir.
Durante décadas, essas pessoas sequer tinham o direito de visitar um amigo, um parente, pois a impiedosa estrada fazia das distâncias obstáculos quase intransponíveis. Vencê-los era tarefa para poucos. Essas pessoas viveram desassistidas do poder público durante muitos anos. Hoje, com a estrada reaberta e a garantia dada pelo governo do Estado de que ela permanecerá aberta ao tráfego de veículos mesmo durante o período de chuva, os moradores ao longo da BR-364 passam a ter nova vida e o direito de sonhar.
São homens e mulheres, jovens e crianças, famílias inteiras que já não tinham esperança de uma vida melhor e passaram a planejar um futuro diferente e se tornam donos de seus destinos.
Três dias para vencer apenas 38 quilômetros de estrada
Quem viaja com tempo e pode parar em algumas residências na BR-364 pode ouvir muitas histórias interessantes e se emocionar com relatos como o de dona Maria do Carmo da Silva Campos, 48 anos completados no último dia 10 de junho. Ela é casada com Odilon Monteiro da Silva, 53. Os dois são casados há 27 anos e têm sete filhos. Moram na margem esquerda da rodovia a 38 quilômetros depois da cidade de Manuel Urbano, numa casinha simples no alto de um barranco.
Conversar com dona Maria do Carmo rejuvenesce. Ela é uma mulher simples e de aparência sofrida, mas é dona de um sorriso largo e de uma jovialidade comum apenas àqueles que nunca deixam de sonhar e que nunca se deixam vencer pelas dificuldades. Maria do Carmo e Odilon contam como era quando não existia estrada. Eles lembram que havia apenas uma picada no meio do mato. As tabocas cobriam o trajeto onde um dia os tratores rasgaram a terra. A distância que os separa de Manuel Urbano não era vencida em menos de três dias.
“Saí várias vezes para Manuel Urbano com cargas de borracha. Passava até três dias para chegar. Dormia na estrada escura, no meio da lama, sem comida e correndo todo tipo de risco”, lembra com tristeza Odilon. “Agora eu saio daqui a pé de manhã cedo e chego ainda de dia”, garante Maria do Carmo, que se gaba do feito nunca antes pensado. “Mas agora não preciso andar a pé, pois tem carro na porta toda hora.”
Odilon está contente, pois a notícia de que um novo supermercado que deve se instalar em Manuel Urbano que tem a pretensão de comprar a produção dos agricultores das redondezas o fez vislumbrar um aumento nos seus ganhos. Sua propriedade tem 100 hectares e ele planta macaxeira, arroz, milho e outros grãos. Já pensa em ampliar a área plantada, algo que jamais imaginava fazer sem a garantia da estrada, pois tudo que plantasse mais do que aquilo que poderia consumir teria que deixar apodrecer no campo, já que não tinha a quem vender. Com a estrada, veio também a energia. A qualidade de vida melhorou sensivelmente. A energia possibilitou a compra de uma geladeira, televisão e outros eletrodomésticos.
“A gente agora pode guardar a carne na geladeira sem medo de perder”, alegra-se Odilon. “A gente vivia no escuro. Quando iluminava alguma coisa era com o combustol. Quando não tinha, o jeito era queimar o sernambi para poder ver alguma coisa de noite”, relembra. O clima de alegria é quebrado quando Maria do Carmo se lembra de pai, que morreu afogado. Por causa da distância, ela não pôde ver o corpo dele. Foram dias de caminhada pela rodovia. Quando ela soube do ocorrido, o corpo já tinha sido sepultado. “Quando eu me lembro disso eu choro, pois nem o corpo de meu pai eu pude ver enterrado.”
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Na escola, pela primeira vez
Maria do Carmo merece muito mais do que menções em um texto sobre a BR-364. Ela e o marido Odilon representam a história viva de quem viveu no sofrimento e no abandono. Um retrato fiel de quem teve que enfrentar enormes desafios para sobreviver no isolamento. Mas eles são muito mais do que isso. São o retrato da esperança de dias melhores e a certeza de que, daqui para frente, pode-se viver um presente digno e lutar por um futuro melhor. Nenhum de seus filhos conheceu a escola. Não havia nenhuma perto de sua casa.{/xtypo_rounded2}
“Ainda ontem passou a diretora pegando o nome dos meninos, pois vão construir uma escola aqui perto. Eles agora vão poder estudar”, alegra-se Maria do Carmo. No meio da conversa ela afirma: “Agora, até eu vou estudar”. A frase é dita em meio a sorrisos orgulhosos. “Vai eu, vai ele [Odilon] e todos os meninos, pois a escola vai ficar bem aí.” O marido também sorri e afirma que está contente de ir à escola junto com os filhos, mesmo já tendo passado dos 50 anos. “A estrada trouxe tudo isso, pois ninguém nunca ouvia falar que ia ter escola por aqui. Eu, por exemplo, nunca pisei numa escola, nunca pude estudar. Aprendi alguns nomes vendo as pessoas lendo e eu escutando. Até o meu nome eu aprendi também assim”, emociona-se Maria do Carmo. “Este ano, eu já uma velha, vou poder estudar, se Deus quiser”, sorri de felicidade. Bem mais à frente, já a 45 quilômetros de Manuel Urbano, na escola José Augusto Marques de Araújo, alunos assistem todos os dias às aulas do professor Vanderlan da Silva Oliveira. É uma turma de 5ª série, com 17 alunos. A maioria mora a mais de um quilômetro da escola. Uns chegaram de bicicleta, outros vieram a pé e outros pegaram carona. Tudo isso era algo impossível de pensar há algum tempo.
“Os alunos que moram mais longe tinham dificuldade de chegar à escola porque a lama não deixava”, lembra o professor. Dulcenir de Souza e Ronilson Lima da Silva, ambos de 16 anos, moram a pouco mais de três quilômetros da escola. Eles demoram mais de 15 minutos no trajeto, mas isso só é possível no período de estiagem. “A gente vem de bicicleta. Mas quando chove, não tem jeito, não dá pra andar mesmo, pois o barro trava as rodas”, conta Dulcenir. “Quando não dá para vir de bicicleta, não dá nem vontade de vir para a aula, já que a gente leva quase uma hora até chegar à escola”, lamenta Ronilson.
Num, o matador de onça
A poucos quilômetros da casa de Maria do Carmo e de Odilon, mora outro personagem da BR-364. Ele se chama Arismar da Silva Miranda, 26 anos. Mas é conhecido mesmo como “Num”, um sujeito alegre que troca a letra R pelo L, igual ao Cebolinha, o personagem de Maurício de Souza. “Num” é magro e de estatura mediana, mas é valente como poucos. Na região ele é conhecido como matador de onça. Disse que já matou “umas quatro”. Mas só mata para defender a família e a criação de porcos e algumas cabeças de gado que cria em sua área de terra localizada há 30 quilômetros de Manuel Urbano. A última onça que matou faz pouco tempo e foi praticamente numa luta corporal com o felino.
“Nós estávamos moendo garapa. Aí ela comeu meus porcos, e minha mulher foi me chamar. Daí, eu voltei lá e botei os cachorros em cima dela, mas era de tarde e eu não consegui matar”, disse. “No outro dia, ela passou aqui no igarapé onde a gente toma banho. Aí eu botei os cachorros nela de novo e eles acuaram ela na mata. Foi aí que eu a matei. Eu dei um tiro nela e ela caiu no chão e correu. Eu fui atrás e os cachorros também. Eles já estavam pegando ela, estavam mordendo ela. Aí eu dei outro tiro e errei. Ela pegou um cachorro meu. Eu tinha uma facona assim grande e eu tirei da bainha e só fiz soltar a espingarda e ‘avoei’ em cima dela. Ela deu um esturro assim e voou em cima de mim. Ela pensava que eu ia correr. Eu empurrei-lhe a faca nas costelas dela e ela caiu”, relatou.
“Num” disse que não mata as onças por prazer, mas para se defender. Ele contou que na região havia muitas e que atacavam sempre a sua criação. Ele disse que na propriedade de um vizinho, as onças comeram dez porcos e diversas cabras que ele criava. “Se a gente não matar, elas acabam com tudo mesmo”, garante. “Num” é casado com Raimunda, de 20 anos. Os dois têm quatro filhos e vivem do que plantam e colhem. Na semana passada, ele estava tirando madeira para construir uma nova casa. Ele quer que o pai venha morar na propriedade. A madeira é tirada no meio do mato e arrastada por um boi até a sua casa. Bois e burros sempre foram fundamentais para ele.
“Aqui, na estrada, a gente só conseguia andar antes se fosse de burro ou no lombo de um boi, pois a lama era demais. A gente passa vários dias para chegar à cidade”, conta. “Era muito ruim viver aqui. Mas já melhorou muito. Agora a gente vai para a cidade quando quer, volta quando quer.”
O socorro chega mais rápido
O leitor já se imaginou sofrendo um acidente ou contraindo uma enfermidade grave e estando isolado no meio de um deserto? Não é algo agradável de imaginar, não é mesmo? Pois casos assim aconteciam e ainda acontecem em meio a outro tipo de deserto – o deserto verde da imensidão amazônica. Nele, as distâncias se medem em horas, dias ou semanas e, nesse contexto, o socorro se torna uma tarefa quase impossível. Era em tal situação que viviam os moradores das margens da BR-364. Maria das Graças de Souza, 55 anos, sabe bem o que é isso. Ela é casada com Edmilson Ribeiro de Lima, 44 anos, tem seis filhos e mora a 17 quilômetros depois de Manuel Urbano. Ela lembra como era quando a estrada não dava passagem e se via sem poder dar o socorro adequado a um filho quando ele adoecia, ou mesmo quando ela própria ou o marido passavam mal. Agora o socorro chega mais rápido. Ela conta dois casos que exemplificam muito bem essa mudança. Há alguns dias Edmilson passou mal. Por sorte o asfalto já estava na sua porta. “Eram altas horas da noite. Nós só fizemos ligar para Manuel Urbano e, em pouco tempo, o carro da saúde chegou e na mesma hora levou ele para o hospital”, contou. O caso mais grave aconteceu com ela própria. Há cerca de três meses ela caiu e quebrou o braço esquerdo. Foi socorrida por um vizinho e levada para Manuel Urbano, onde recebeu todo o atendimento de emergência. Em seguida foi levada para Sena Madureira e depois para Rio Branco, quando recebeu atendimento especializado. “Se fosse naquele tempo, eu teria que ir de cavalo para Manuel Urbano, no meio da lama, correndo o risco de cair e piorar ainda mais.”
Isolado na periferia de Cruzeiro – Bem mais distante de Maria das Graças, já em Cruzeiro do Sul, mais especificamente no bairro Miritizal, outro caso comprova a importância da estrada e das pontes ao longo da rodovia. Ali um homem agonizava horas sempre que tinha uma crise hepática, mesmo estando na periferia de Cruzeiro do Sul. Manoel da Cruz da Silva, 57 anos, sofre de hepatite e tem crises intensas muito dolorosas que o fazem gritar de dor. Quando elas vêm, a dor só passa depois que é medicado. O problema é que o Miritizal fica a poucos metros do centro de Cruzeiro, mas separado da cidade pelo rio Juruá. Como não havia pontes ligando a cidade ao bairro da periferia, chegar ao hospital era uma odisseia. Quando as crises eram noturnas, a situação se complicava, já que era difícil encontrar uma catraia ainda em atividade ou um barqueiro que se dispusesse a cruzar o rio com o paciente.
No último dia 3, a ponte sobre o Rio Juruá foi liberada para o tráfego em solenidade que também marcou a reabertura da BR-364. Nesse mesmo dia, Manuel se viu com uma nova crise. A dor intensa na barriga chegou de imediato. Rapidamente os filhos chamaram um mototáxi e em menos de dez minutos ele estava sendo atendido no hospital-geral da cidade. “Quando isso acontecia, meus filhos me levavam nos braços até a beira do rio. De lá, a gente ia de catraia, quando tinha, se não, tinha que correr atrás de alguém que me levasse ao outro lado”, contou. “Dessa vez, foi bem rápido. Eu fui para o hospital e lá me atenderam em poucos minutos”, afirmou. “Essa ponte foi uma grande obra. Eu agora me sinto mais seguro, pois tenho certeza de que não vou mais morrer à mingua sem socorro.”
Vidas transformadas
São muitas as histórias encontradas ao longo da BR-364. A maioria delas mostra o quanto a vida das pessoas mudou e está mudando a partir de uma obra como a pavimentação da rodovia e a chegada do Programa Luz para Todos, que é realizado pelo governo federal em parceria com o governo do Estado. Os fios que transportam a energia estão esticados nas margens da estrada e em cada casa a que chegam levam muito mais que a luz, levam a praticidade da geladeira ou do freezer, levam a informação e o entretenimento através do rádio ou da televisão e todo o conforto que os eletrodomésticos podem dar. A casa de Maria das Graças citada acima é um exemplo disso. Ali ela tem uma vendinha, onde comercializa refrigerantes, laticínios e outros produtos. Na sala, um aparelho de som toca suas músicas preferidas e uma televisão está disposta na estante para ser assistida na hora das novelas ou nos programas preferidos dela e do marido Edmilson.
“Quando que a gente podia pensar em ter essas coisas aqui em casa? Nunca! Agora está tudo aí, graças à energia que chegou aqui na nossa porta. Antes era só escuridão e muita lama”, garante a mulher. Pouco mais de 45 quilômetros depois de Tarauacá mora Juarez Ferreira de Almeida, a mulher Maria Antônia Alves da Silva e mais quatro filhos. Estão ali há mais de 15 anos. O local é um dos mais belos da região. A casa deles fica localizada um pouco abaixo da estrada e cercada por morros, uma bela paisagem. O casal conta com satisfação que a energia e a estrada alteraram suas vidas para melhor. “A gente fica mais tranquilo quando os filhos da gente vão para a aula. Não tem mais o perigo que tinha antes, não tem mais a lama que havia antes também. O medo agora é só os carros que passam aqui com velocidade, mas é só a gente ter mais cuidado”, afirma.
“Aqui em casa também melhorou, pois não precisa mais usar a lamparina, temos água gelada e a gente pode guardar carne na geladeira, que não estraga mais”, relata. Bem mais à frente, no quilômetro 641, a 160 quilômetros de Cruzeiro do Sul, uma casinha se destaca pela simplicidade. Ela é uma pequena choupana, feita de madeira e coberta de palha. No quintal, muitas flores, pimenteiras, fruteiras e algo que chama atenção: uma antena parabólica. Na casa mora o casal Raimundo Pinheiro da Silva e Adalgisa Batista da Silva, uma filha e alguns netos. “A televisão é uma maravilha para essas crianças”, afirma Adalgisa. “A gente tem também uma geladeira. Mas o bom mesmo é ter luz de noite. Ter luz para iluminar a frente da casa e ter luz na cozinha.”
As parabólicas são comuns na maioria das casas. Quase todas as residências localizadas nas margens da estrada têm antenas do tipo. Sem elas, seria impossível sintonizar canais de televisão. Esse é um “luxo” que só foi possível graças aos investimentos feitos pelos governos estadual e federal.
Menos carestia: custo de vida cai nas cidades com a reabertura da rodovia
As leis de mercado são implacáveis. São elas que determinam os preços, e não adianta protestar. Quando a oferta é grande, os preços caem; quando o produto é escasso, o preço vai lá para cima. É a tal da lei da oferta e da procura. Nas cidades ao longo da rodovia BR-364 essa lei é cumprida à risca. Quando a estrada está fechada, os produtos não chegam àquelas localidades. Frutas, verduras, legumes e tudo mais começam a rarear nas prateleiras. É aí que os preços disparam. Isso porque, com as chuvas fortes que provocam o fechamento da estrada por até oito meses, fica impossível o transporte dessas mercadorias por via terrestre. Tudo chega por balsa através dos rios ou de avião. O custo do frete sobe bastante e acaba influenciando no preço de tudo.
Um quilo de feijão, por exemplo, pode ser vendido por até R$ 7 em Cruzeiro do Sul quando a estrada está fechada. Este ano a estrada abriu mais cedo e a diferença já pode ser sentida com a queda dos preços. “Os preços estão bem melhores. Do jeito que estava não dava para a gente comprar nada. Dou graças a Deus que essa estrada abriu”, disse a doméstica Elizete Ferreira Farias. João Freitas Valente, granjeiro, também agradece a reabertura da estrada. Ele vendia a dúzia de ovos no comércio local a R$ 3,50 no período de chuva. Já os comerciantes vendiam no varejo a dúzia por até R$ 5. “Tudo fica mais caro com a estrada fechada. A ração é o que pesa mais”, explica João Freitas. “Agora a gente vende a dúzia por até R$ 2,50.”
Em Cruzeiro do Sul, o feijão já custa R$ 4, e o arroz, R$ 2,50. O centro de Cruzeiro do Sul fervilha nessa época do ano. O mercado é reabastecido e os preços despencam. Caminhões e mais caminhões chegam todos os dias carregados de mercadorias. É possível comprar não apenas alimentos, mas uma série de outras coisas, como roupas, panelas e até eletroeletrônicos.
Em Feijó não é diferente. No centro da cidade, os caminhões param na praça e fazem a venda direta ao consumidor. Suely e o marido Bobys Saulino são proprietários de uma lanchonete em Rio Branco. Ele também é caminhoneiro e o casal tem ainda uma caminhonete. Este ano eles alugaram a lanchonete, compraram mercadorias – frutas e verduras, em sua maioria – e se aventuraram em Feijó. Só nos primeiros dez dias deste mês, o casal já tinha feito sete viagens levando cerca de sete mil quilos de produtos variados em cada uma. “A gente resolveu fazer um teste e deu muito certo. Daí resolvemos trazer o caminhão e a caminhonete e demos muita sorte. A gente vende tudo em um dia, no máximo um dia e meio”, contou Suely.
Eles vendem tudo na rua mesmo. Estacionam o caminhão na praça, montam uma barraca para se proteger do sol e oferecem os produtos. Cliente não falta e o lucro é certo. A dona de casa Suzi Cardoso Silva é uma das clientes. Ela disse que somente nesse período é possível se alimentar bem. “O quilo de tomate chega a R$ 7, mas agora a gente compra até por R$ 3. A gente só come bem quando a estrada abre, pois é difícil manter boa alimentação com os preços altos”, alegou.
Gente de todo o Brasil se encontra nas obras da rodovia
Seis empresas trabalham nas obras de pavimentação da BR-364. Nos canteiros espalhados ao longo da rodovia, é possível encontrar brasileiros de diversas naturalidades. São operários, homens e mulheres que vieram do Sul, do Centro-Oeste, do Nordeste, Sudeste e dos demais Estados do Norte. São engenheiros, operadores de máquinas, pedreiros e ajudantes de serviços gerais. Voltam para suas cidades quando chegam as chuvas e as obras param, mas retornam no ano seguinte quando as máquinas voltam a rodar nos trechos, enquanto outros ficam por aqui e acabam se fixando no Acre. Esse é o caso do apontador José dos Reis. Ele trabalha na empresa JM, é de Brasília e está trabalhando nas obras da BR-364 desde 2005, mas já se considera acreano.
“Eu casei com uma moça de Tarauacá e já estou morando na cidade. Não penso em sair mais daqui”, conta, alegre, o operário. Edinalva Evangelista é do Maranhão. Ela trabalha como técnica em segurança do trabalho há três anos, mas retorna para seu Estado sempre que as chuvas impedem o trabalho e volta quando a estiagem chega. “Eu tenho minha família lá, mas gosto muito daqui. É um lugar muito bom para se viver”, elogiou. Os acreanos são a maioria e muitos deles aproveitam para aprender com os companheiros que vêm de fora. Antônio Ivo trabalha há três anos como operador de máquinas. É ele quem manobra a vibroacabadora, a máquina que coloca o asfalto na pista. Antes ele era apenas mais um operário sem muita qualificação.
“Eu ajudava, mas não sabia operar nenhuma máquina. Daí, fiz amizade com um operador de fora e ele prometeu que ia me ensinar. Fui olhando e ele me explicando. Agora eu opero a maioria dessas máquinas”, afirmou Ivo.
Uma viagem épica pelas veredas da BR-364
A rodovia BR-364 que se vê hoje não era mais do que um rumo no ano de 1995, uma vereda rasgando as matas do Acre de uma ponta a outra. Não é preciso repetir que só se aventurava por ela quem tinha estrita necessidade, pois as intempéries tornavam a viagem uma epopeia. Naquele ano, um grupo de jornalistas resolveu encarar o desafio de cruzar o Estado do Vale do Acre ao Vale do Juruá pela estrada. A viagem que se faz hoje em poucas horas levou longos 20 dias. Entre esses jornalistas estava o hoje apresentador Washington Aquino e o fotógrafo Sérgio Vale. Entre os dias 10 e 12 passados, eles repetiram a viagem, dessa vez de carro. Foram e voltaram e aproveitaram para parar em locais que conheceram naquele ano. Eles contaram o quanto sofreram para vencer a lama e a mata, que em muitos trechos impediam que a luz do sol batesse no leito da via.
“A viagem foi feita no fim de julho, no auge do verão”, disse o jornalista. “Nós fomos de Toyota [Bandeirantes] de Rio Branco até Sena Madureira. Lá tinha uma comitiva de burro nos esperando e também dois mateiros que eram os nossos guias, pois ninguém sabia onde era a estrada e onde era a mata”, relembra Aquino. “Eram 16 animais para nove pessoas”, completa Sérgio Vale.
A história dos dois foi contada em um restaurante logo após o Rio Acurauá, onde hoje uma ponte facilita a travessia. “Nesse rio, eu tive que passar amarrado numa corda, pois eu não sei nadar e não tinha ponte para atravessar”, disse o apresentador. Além dos burros, o grupo também viajou em cavalos e a pé. Washington Aquino disse que, em certo trecho, não conseguia mais andar. O meu pé estava em carne viva devido à bota que machucava. Tive que esperar os ferimentos sararem um pouco para poder continuar, contou. O resultado da viagem se transformou em uma reportagem premiada. Ela ganhou o Prêmio Nacional de Mídia, promovido pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT).
Deracre garante que estrada não fechará mais
Este ano a história da rodovia BR-364 muda completamente. Ela foi reaberta no início do mês e não deve mais fechar para o trafego de veículos, mesmo no período de chuvas. A garantia foi dada pelo governo do Estado. Esse também é um compromisso assumido pelo governador Tião Viana desde o período de campanha. Para concluir a estrada faltam apenas pouco mais de 70 quilômetros, distribuídos em três trechos entre Manuel Urbano e Feijó. Em alguns desses trechos há muito ainda que se fazer, mas o Departamento de Estradas de Rodagem, Hidrovias e Infraestrutura Aeroportuária (Deracre) garante que é possível deixar a estrada no ponto de garantir tráfego o ano inteiro. O diretor-presidente do Deracre, engenheiro Marcus Alexandre Médici, explicou que o problema maior é a drenagem.
Ele disse que a obra da rodovia exige uma grande estrutura para garantir o bom escoamento das águas pluviais. “Enquanto no Vale do Acre a média chega a ser um bueiro por quilômetro, na BR para Cruzeiro a média é de três bueiros por quilômetro. Só no trecho Sena/Feijó, nós fizemos dez pontes médias e grandes. A quantidade de curso d’água que a gente tem que transpor é muito grande”, explica o diretor. Alexandre reforça que as obras nos trechos em questão estão se concentrando na construção dos bueiros e galerias, evitando assim a formação dos atoleiros que impedem o tráfego de veículos.
Depois de prontos, as empresas que trabalham na estrada devem concluir as bases de terraplanagem, permitindo que a estrada se torne estável, mesmo não tendo ainda a cobertura asfáltica. “Nós temos cerca de quatro meses para fazer esse trabalho. É tempo mais do que suficiente, pois se esse trabalho estiver concluído, daí para frente é só dar a manutenção para evitar que as chuvas provoquem o fechamento da estrada”, garante Marcos Alexandre. O diretor do Deracre afirma que o governo está com cuidado maior para evitar que a estrada seja prejudicada com o excesso de peso. Duas balanças rodoviárias foram instaladas ao longo da rodovia. Caminhões com peso acima do permitido são proibidos de passar.
Marcus Alexandre faz um apelo para que as pessoas tenham cuidado ao trafegar pela rodovia. Ele lembrou que há muitas máquinas na pista. Há também enormes rebanhos de gado que estão sendo transportados. Os riscos de acidente são grandes quando se transita com velocidade. Ele lembra, também, que o período não está propício para quem trafega em carros pequenos, haja vista que faz poucos dias que a estrada foi liberada, por isso há ainda alguns trechos onde o tráfego para esse tipo de veículo não é recomendado. Ele orienta que as viagens com veículos de passeio sejam concentradas a partir de julho, quando a estrada dará melhores condições de tráfego.
Know-how na construção de pontes
Ao todo, o trecho acreano da BR-364 tem 56 pontes. 47 delas estão entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul. É nesse trecho, também, que estão as mais belas e mais modernas pontes da Amazônia, com destaque para a ponte sobre o Rio Juruá, com 550 metros. “Nós temos pontes de todos os tipos. Temos pontes rodoviárias, que são as convencionais, aquelas de viga reta em concreto. Temos pontes com tecnologias mais avançadas, que é o caso da ponte sobre o Rio Caeté, que foi construída em viga metálica, e a do rio Purus, que tem viga metálica e também outra tecnologia chamada balanço sucessivo, que é igual à quarta ponte de Rio Branco. E tem as estaiadas.
A do Rio Envira e a do Rio Tarauacá são as do tipo extradorso, que têm os estais, mas também têm função estrutural no tabuleiro, e tem a do Rio Juruá, que é 100% estaiada”, declarou Marcus Alexandre. De acordo com o diretor do Deracre, é a do Juruá a ponte mais moderna de todas.
Ele explica que ela reúne todas as tecnologias usadas nas demais e ainda uma tecnologia que a faz suportar abalos sísmicos, já que a região do Vale do Juruá é a mais propícia no Estado a sofrer esse tipo de acidente geológico. A ponte do Juruá deve ser inaugurada em agosto. Ela é suspensa por uma única pilastra central, que mede 56 metros de altura e por 22 estais, que são cabos de aço fixados do alto da pilastra central para a base da ponte em concreto. Os estais dão um visual diferenciado à ponte, que parece flutuar sobre o rio.
Os desafios para construir a rodovia BR-364
Construir na Amazônia não é coisa fácil. As intempéries se mostram obstáculos implacáveis. Além disso, no Acre não há materiais básicos para a obra, como a pedra, por exemplo. Para se ter uma ideia das dificuldades que a isso impõe, o seixo, uma das matérias-primas utilizadas na obra, vem da fronteira com a Colômbia, a 3.409 quilômetros. Ele é transportado por balsas e demora cerca de 60 dias para percorrer o caminho. Já a brita vem das pedreiras de Rondônia. Quando há a possibilidade de tráfego, o material vem pela rodovia. Quando o período é chuvoso, a brita é levada de caminhão até Porto Velho e de lá é embarcada em balsas e levadas à região acreana onde a obra é realizada. O cimento, em sua maioria, vem de Manaus e também é transportado por via fluvial. O aço vem de São Paulo e do Rio Grande do Sul. Ele chega de carreta até Porto Velho e depois é embarcado em balsas e transportado até o Acre. Desde que o governo do Estado decidiu pela conclusão da obra da BR-364, há 13 anos, que essa logística é montada, ano após anos. Uma grande soma de recursos é investida só para garantir que não falte material nos canteiros de obra, encarecendo em muito o custo do quilômetro de estrada. Este ano o governo do Estado fez a compra antecipada dos insumos e aproveitou a cheia dos rios para garantir o transporte dos materiais até o Acre. Tudo o que vai precisar para o trabalho na rodovia este ano já foi adquirido e já se encontra no Estado desde o início do ano. Veja na tabela abaixo a relação de insumos:
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