Festividade consolida o Acre como destino etnoturístico
Se fosse possível resumir em poucas palavras o que foi o 8º Festival Yawa eu diria: "Cinco dias de festa no céu". No domingo à tarde, dia 25 de outubro, aconteceu a cerimônia de abertura com preces, ritos sagrados e cânticos, brincadeiras e danças que iriam durar até quinta-feira num clima de alegria, fraternidade e animação envolvendo cerca de 500 índios Yawanawá e de outras etnias como Ashaninka, Katuquina, Puyanawa, Nukini e Kuntanawa e ainda 200 convidados, entre estes, gente da região, pessoas de outros estados e estrangeiros de seis países. A natureza mostrou toda sua beleza, tanto nos momentos em que iluminava e ardia um sol poderoso, quanto naqueles em que caíam chuvas torrenciais. À noite, a lua, esplendorosa no céu, ora se escondia atrás de nuvens pesadas, ora mostrava sua face luminosa por entre nuvens finíssimas, desenhando mandalas no céu e espiando aquela multidão feliz, enfeitada com cocares, vestida com saias tecidas com palhas de buriti e os corpos pintados com urucum e jenipapo. Era o povo do queixada mostrando às forças criadoras através de cânticos, danças, brincadeiras, culto às tradições espirituais que a existência humana sobre o planeta é possível e, mais que isso, pode ser feliz.
A festa do povo Yawanawá firmou-se como a mais expressiva manifestação da cultura e espiritualidade indígena no Acre, um estado rico em diversidade étnica, com 14 povos indígenas , muitos deles da etnia Pano, na qual os Yawanawá se incluem. A festa não surgiu agora. Muito antes de conhecer o homem branco, os Yawanawá faziam seu festival e convidavam os outros povos indígenas da região. Depois do primeiro contato com o homem branco, ocorrido na primeira metade do século passado, o ‘povo do queixada’ (tradução de Yawanawá) passou por um período nebuloso, tornando-se praticamente escravo de seringalistas e, mais recentemente, sofrendo o assédio de missionários americanos que tentaram destruir a cultura original, proibindo a continuação das cerimônias sagradas, insinuando que andar nu é pecaminoso e implantando uma religião e um estilo de vida. Acabaram expulsos pelo cacique/pajé Biraci Brasil (Nixiwaka), do qual se pode informar que é o maior responsável pelo ressurgimento vigoroso da cultura e espiritualidade Yawanawá.
Outra batalha vencida pelo povo Yawanawá foi a demarcação de sua terra. Hoje, depois da revisão dos limites, a terra indígena incorporou nascentes e áreas de perambulação, e ficou com 186.395 hectares, um território que começa no médio rio Gregório – expressivo afluente do rio Tarauacá, situado no vale do rio Juruá – seguindo até suas cabeceiras, tudo dentro do município de Tarauacá. A aldeia Nova Esperança – palco da festa – é a principal, abrigando mais da metade de toda a população Yawanawá, onde está localizada a maior escola e onde mora o cacique Biraci e a esposa Putany, primeira mulher pajé do povo Yawanawá.
Biraci conta que mesmo durante os anos nebulosos não morreu o sonho de trazer de volta o espírito alegre, o culto às tradições, o cultivo da língua, da espiritualidade e o desejo de compartilhar com a sociedade branca "toda essa nossa história, sem medo de ser feliz". "No passado foi muita humilhação, discriminação, tanta que nós recolhemos nossa felicidade e nossa alegria, por que o branco nos criticava, mangava da gente, nós éramos feios para a sociedade. Hoje é diferente, a sociedade branca vem de várias partes do Brasil e do mundo nos prestigiar, tira suas roupas, pinta seus corpos com jenipapo e urucum, brinca junto com a gente. Isso nos orgulha, nos dá o conforto de que o que fazemos é importante. O festival faz crescer nossa animação e nossa esperança e tem aumentado nossa autoestima", explanou.
Portas abertas
Durante o 8° Festival Yawa muitas portas se abriram para todos os participantes, através da interação entre conhecimentos e experiências diferentes. Para o povo Yawanawá significou também o estabelecimento de um convênio com o Jardim Botânico do Rio de Janeiro. O convênio firmado entre Biraci e o pesquisador Alexandre Quinet vai possibilitar que índios da aldeia visitem e estudem no Jardim Botânico, ao mesmo tempo em que pesquisadores da instituição visitarão a terra Yawanawá. O Jardim Botânico também dará apoio técnico no manejo da flora. O convênio terá grande importância para a solidificação do Centro de Formação e Memória do povo Yawanawá que está sendo implantado na Aldeia Sagrada.
Com assessoria do líder daimista Paulo Roberto, o povo Yawanawá entrará com um projeto junto ao Google de monitoramento de todo o território via satélite, o que vai lhe possibilitar a visão e proteção de seu território, dos recursos naturais, flora e fauna em tempo integral.
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Planejamento eficaz
A cada ano, o festival fica maior, exigindo muito planejamento e preparação da estrutura. Da ponte do rio Gregório, na BR-364, até a aldeia Nova Esperança são oito horas subindo o rio em barcos empurrados por motores de rabeta. Para dar conta de transportar convidados, víveres, material de comunicação e bagagens diversas o cacique Biraci contou com uma frota de 16 barcos, pilotados por jovens Yawanawás, todos exímios em conduzir a embarcação por canais sinuosos cheios de paus e ainda evitando os bancos de areia, pois nesta época do ano o rio ainda se encontra com pouca água.
A organização do festival gera uma intensa atividade interna dos índios, preparando suas casas para receber os visitantes, limpando os canais do rio, produzindo tinturas de urucum e jenipapo, tecendo pulseiras e cocares, colhendo o veneno do kampu, preparando rapé e Uni. O investimento dos Yawanawá é alto em recursos monetários e em horas de trabalho dedicados ao planejamento, estruturação e realização, período em que precisam interromper suas atividades habituais. Fator decisivo neste 8° Festival para o equilíbrio das contas foi a presença dos turistas, levados por uma agência acreana e um grande contingente de daimistas do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília.
Os visitantes tinham, na hora do café, almoço e jantar, um ótimo momento de interação, onde se firmaram amizades entre pessoas de diferentes linhas espirituais, de estados e países diferentes. Por toda parte havia cachos de banana madurinha, à disposição de todos. As pamonhas de milho, as pupunhas também puderam ser apreciadas e fizeram sucesso. No período mais quente do dia, no intervalo das brincadeiras, o refúgio era no imenso chapéu de palha, onde quem quisesse podia cantar, tocar, batucar, uma diversão diária.
O superintendente do Ibama no Acre, Anselmo Forneck conhece os Yawanawá há quase três décadas, desde os tempos de militante no CIMI e participou de momentos marcantes da história da aldeia como foi o caso da expulsão dos missionários americanos e na luta pela demarcação da terra. Para ele o ressurgimento do povo Yawanawá está diretamente relacionado à conquista da terra. "Depois de 30 anos subjugados material e espiritualmente, o povo Yawanawá ressurgiu das cinzas, voltando a ter sua vida e essa vida, sem dúvida está ligada à conquista da terra. Sem a terra-mãe é impossível por que ela dá o peixe, dá água, dá o sol, dá a caça, a banana. Ao reconquistar sua terra estão revivendo o mundo de sua cultura e o mundo sagrado de sua espiritualidade. Hoje, a Amazônia está rindo de felicidade em saber que ela existe para esses povos para os quais ela sempre existiu". Segundo Forneck, o Ibama dá apoio aos Yawanawá na gestão ambiental, na formação de agentes ambientais voluntários e no repovoamento de quelônios.
Turismo na aldeia – O Festival Yawa realizado nos dias 25 a 29 de outubro mostrou que o Acre, com 14 etnias em seu território, tem enorme potencial para o etnoturismo. Uma empresa de turismo local conseguiu vender 25 pacotes. São pessoas que atenderam ao apelo etnoturístico. Para o gerente da agência, João Bosco, a atividade no estado tem crescido devido ao apoio decisivo do governo estadual, que está estruturando o setor. Ele tem a expectativa de que outros líderes indígenas organizem seus calendários festivos para que haja novas parcerias.
Três operadores de turismo estiveram no festival, avaliando o potencial de atração para seus públicos, um deles, francês. O operador paulista Israel Waligora acha que está surgindo um grande interesse no Brasil em conhecer as culturas indígenas e isso ainda não está muito acessível. "Nesse ponto, o Acre inova", comentou. Ele considera que para o povo Yawanawá, o festival pode significar uma fonte de renda de modo que facilite a preservação da floresta. Já para o visitante que vem de outras regiões do país, fica o incentivo para ser mais brasileiro. "Somos assediados por tantas manifestações culturais de fora enquanto existe uma riqueza cultural tão consistente pelo país afora", comentou.
O advogado criminalista e conselheiro da OAB-SP, Otávio Augusto Rossi Vieira, comprou um pacote turístico e participou intensamente do festival, tanto das cerimônias quanto das brincadeiras e danças. Ele é ayahuasqueiro e participa de um grupo xamânico. "Sempre estive em busca do sagrado. Comecei com os índios norteamericanos. Sem querer, pesquisando pela internet cheguei aos Yawanawá. Gostei das sessões de Uni e do rapé. Gostei das brincadeiras, das pessoas e do local. Para lidar com o ego é muito bom estar aqui", disse.
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Marco regulatório para o turismo em terra indígena
O secretário de Turismo do Acre, Cassiano Marques, acredita que a atração do festival Yawa está no fato de que as pessoas hoje procuram uma experiência autêntica na qual possam passar por um processo de transformação, o que tem atraído gente de várias partes do mundo. Para ele, como o Acre tem uma diversidade étnica muito grande o ideal seria haver vários festivais ao longo do ano. Ele acredita que as pessoas que passam por esta experiência de renovação sempre falam para outros e a tendência é aumentar o fluxo turístico para a região.
Em relação aos aspectos legais relacionados ao turismo em terra indígena, Cassiano informa que está sendo construído um marco regulatório e o festival Yawa serve como exemplo. "A abertura do festival para atividade turística foi um convite do próprio povo Yawanawá, de dentro para fora, e esse deve ser o primeiro preceito ético. Além disso, existem outras considerações como a verificação do impacto cultural, se este contato não está modificando o cotidiano do povo indígena. Há questões como os direitos de imagem, como se dará essa entrada na terra indígena, etc" , explicou.
O secretário conta que o apoio do Governo do Estado se dá na estruturação de forma que o festival se torne cada vez menos dependente do poder público. Assim, a Secretaria de Turismo ofereceu assessoria técnica aos Yawanawá, ajudando a criar a comissão organizadora e assessoria relacionada ao recebimento de turistas. Ele considera que a abertura do festival à sociedade branca precisa garantir retorno financeiro para os índios, pois toda a população das aldeias fica envolvida, da preparação à execução e isso tem um custo, já que, algumas atividades diárias são interrompidas.
Cerimônias do rapé e do Uni
O Uni é a bebida sagrada dos Yawanawá. ‘Ela leva ao outro mundo’ – explicou um índio. É a mesma bebida conhecida por Ayahuasca, Daime, Vegetal, feitos com o cipó Jagube e a folha Rainha. No entanto os Yawanawá têm uma maneira própria de preparar a bebida, de maneira bem simples. A bebida é pouco apurada, mas eficaz nas sessões. No momento em que o pajé distribui a bebida ele sempre faz uma reza, para garantir a segurança da ligação. Os Yawanawá cultivam um tipo específico de folha Rainha, a Kawá, que significa ‘dona de todas as cores’. A linha Yawanawá se sustenta com a proteção dos espíritos da floresta e veneração dos ancestrais, dentre eles, o principal, é o velho Antônio Luiz, cacique falecido na década de 1970, que era médium e trabalhava com cinco entidades, segundo informação de Biraci. Hoje, a maior parte dos trabalhos com Uni são dirigidos pelo cacique Biraci, por Putany e por Yawa. As melodias do Uni são maravilhosas e tem o poder de conduzir a um mundo de luzes e à compreensão espiritual da consciência indígena.
O rapé é uma unanimidade entre os Yawanawá. Parece que todos gostam. Ele é feito unicamente de tabaco e cinzas de outras árvores, dentre elas o Pau Pereira. Soprado para dentro das narinas através de um instrumento tipo um bambu oco, o tipi, e aplicado por um pajé provoca uma forte reação nos mais inexperientes. Também pode ser aplicado pela própria pessoa com outro instrumento denominado Kuripe.
O índio Kapakuru, que significa quatipuru roxo é um dos principais feitores e aplicadores do rapé. Conhecido na aldeia e fora dela como Manoel, ele explica que o rapé é uma tradição cultural e espiritual do povo Yawanawá. Ele é usado como consagração depois do trabalho, para desabafar, relaxar, esfriar a memória. Ele pode ser usado a qualquer hora e tira o enfado físico mental e espiritual, quando nasce um novo pensamento, uma ideia nova. O ideal é usar o rapé na hora da cerimônia do Uni, as duas energias se unem e o Uni vem com mais luz, mais perfeito, mais profundo. Há quatro anos ele não fazia rapé. Começou a observar e experimentou fazer. Antes, ele explica que o feitor do rapé passa sua energia para a medicina do rapé. Assim que fez rapé pela primeira vez, Manoel o apresentou ao cacique Biraci. "Seu rapé é nota 10 e você tem a missão de se tornar pajé do rapé", teria dito Biraci. A partir de então Manoel foi aperfeiçoando seu rapé e ficou sendo o feitor oficial do cacique. "Tenho essa missão de fazer rapé" – concluiu.
O soldado PM de Cruzeiro do Sul, Márcio Rodrigues, experimentou o rapé. A respeito de sua experiência disse: "A gente percebe o rapé como uma renovação espiritual. Você reflete sobre si mesmo, procura seu eu interior. Também tomei o rapé para entender melhor a maneira como os índios vivem, esta força que há na aldeia. No primeiro momento deu vontade de vomitar, mas, passado o desconforto, veio uma sensação boa, leve.
Brincadeiras e danças: o motor do festival
O Festival Yawa tem duas partes distintas: a lúdica e a espiritual, ambas sempre acompanhadas de canções. É preciso dizer que os Yawanawás são afinadíssimos, as vozes são maviosas e os cânticos belíssimos. Algumas canções são cantadas apenas nas brincadeiras e danças, outras somente nas cerimônias com Uni e finalmente algumas são comuns aos dois momentos.
As brincadeiras e as danças são o motor do festival. Elas ocorrem durante todas as manhãs até meio-dia ou mais e, à tarde, a partir das quatro horas mais ou menos e entram noite adentro. Algumas lembram as brincadeiras de roda outra são específicas sendo as mais notáveis as brincadeiras/danças: do lançamento do bastão, do jabuti, das abelhas, do macaco prego, do urubu, do morcego, da cana, do mamão, do peixe-boi, do carapanã, do sapo, entre tantas outras.
Elas são puxadas pelo incansável pajé Yawa, pelo Biraci, o velho Tatá, as duas irmãs pajés Putany e Ushahu, outros adultos e até por jovens como Xaneihu, filho de Biraci, estudante de administração na capital acreana e um dos líderes que despontam na nova geração de índios acreanos.
Nani Yawanawá é um dos maiores líderes entre os Yawanawá. Ele e a esposa Fátima administram a aldeia Nova Esperança. Fátima é a grande animadora, sempre convidando todos a entrarem na roda. Nani explica que as brincadeiras não se destinam à diversão simplesmente. Elas vão além, tem um significado e um proveito que se tira dela. Ele conta que a brincadeira do lançamento do bastão (que hoje é feito com madeira bem leve) representa como os guerreiros eram escolhidos no passado para a guerra. Os guerreiros tinham que mostrar habilidade para pegar no ar a lança atirada contra ele e no mesmo ato devolvê-la contra o oponente, só assim iriam para a guerra. Na escolha original, os guerreios Yawanawás usavam não um bastão, mas uma lança de verdade, de guerra.
Na brincadeira do peixe-boi, os índios fazem uma espécie de desafio. Dois deles vão para o meio da roda, cada um deles munido de um talo de folha de bananeira, de aproximadamente dois metros e após alguns passos desferem uma forte chicotada com o talo nas costas do oponente. O estalo é forte e dependendo costuma deixar uma mancha cor de sangue. O índio Aldaíso Yawanawa (Viñu), que é universitário em Tarauacá e participa da coordenação da festa conta que a brincadeira é uma hora de tirar as mágoas de um para o outro. Um índio que não esteja gostando do seu cunhado, da maneira como ele trata sua irmã, pode ser desafiado. As mulheres também tiram suas diferenças na ocasião. Depois das lapadas os oponentes saem abraçados demonstrando que as mágoas acabaram ali. Conta Aldaíso que antigamente os índios utilizavam para as lapadas outros tipos de chicotes como o talo de buriti trançado, o cipó ruti, que é duro e cheio de nós, ou o couro de anta curtido. "Era escutar o estalo e ver o sangue descer" – disse. Ele adianta que no próximo festival os chicotes tradicionais começarão a ser reintroduzidos.
A fotógrafa Livia Buschele, que está fazendo um livro de fotografias sobre o povo Yawanawá, conta que no início ficou um pouco inibida de entrar nas brincadeiras, mas depois viu que os índios têm o maior prazer em ver os visitantes na roda, o que a animou a brincar também. Foi o que se viu todos os dias, índios, brasileiros, estrangeiros, homens, mulheres, crianças e velhos girando a roda da alegria das danças Yawanawá, cantando canções maravilhosas e sentindo a satisfação de simplesmente brincar.
Aliança espiritual com o Santo Daime
Em fevereiro deste ano aconteceu a reabertura da Aldeia Sagrada, situada a cerca de 10 km da Nova Esperança, rio acima. Na ocasião, convidados pelo cacique Biraci Brasil, um grupo de daimistas do vale do Juruá, coordenados pelo ‘Centro de Estudos da Ayahuasca, Flor de Jurema’, centro daimista do Rio Croa, que é dirigido por Davi de Paula e a esposa Fabiana, participou da reabertura da Aldeia Sagrada e do primeiro trabalho com Uni, ali, depois de 27 anos, tendo acontecido também trabalhos da linha do Santo Daime, inclusive um feitio da bebida, ao mesmo tempo em que os Yawanawá faziam pajelanças e cerimônias de Uni. Nos meses seguintes, Biraci, Yawa e Putany visitaram várias casas espirituais e centros de Daime do Rio de Janeiro e São Paulo o que criou o interesse de daimistas de outras regiões em conhecer o trabalho Yawanawá.
Esta aproximação avançou durante o 8° Festival e solidificou-se através de uma aliança selada entre o cacique Biraci Brasil e Paulo Roberto Silva e Souza, líder da Igreja daimista Céu do Mar, situada no Rio de Janeiro. Paulo Roberto já abriu igrejas daimistas em 14 países e combinou a ida de uma comitiva Yawanawá a nove países europeus no início do próximo ano. Segundo Paulo Roberto a abertura da aldeia ao Santo Daime – que é uma religião cristã – por parte dos Yawanawá demonstra sua tolerância religiosa.
O líder daimista dirigiu um ‘trabalho’ oficial como se chama a sessão no Daime, com direito ao fardamento branco – o mais solene – e cerimônia de batizado, quando a pedido dos índios sete crianças foram batizadas segundo a tradição daimista, dentre elas a princesinha Muká Shahu (filha do Muká, a planta sagrada), já que é a primeira criança nascida na terra Yawanawá em que tanto pai (Biraci) quanto a mãe (Putany) são pajés que já fizeram o juramento do Muká. Para Paulo Roberto, se o Brasil tivesse tido este relacionamento desde o início com os povos indígenas, o país seria hoje muito melhor e mais poderoso. Durante uma das tardes, perante grande plateia de índios e brancos no chapéu de palha, ele, que é descendente de portugueses e italianos, pediu perdão em nome do povo branco, às agressões perpetradas contra os povos indígenas na ocupação da Amazônia e do Brasil.
No início da aproximação com o Santo Daime, alguns membros da aldeia estranharam. O índio Teka Matxuru, um dos generais do cacique Biraci, conta que ficou desconfiado. No entanto, durante o feitio do Daime, em fevereiro, na Aldeia Sagrada, quando caminhava do centro da aldeia para a casinha do feitio, teve um encontro espiritual com o patriarca Antônio Luiz, o reverenciado cacique e pajé maior da espiritualidade Yawanawá, falecido na década de 1970. Segundo Teka, Antônio Luiz lhe disse então que os homens que estavam chegando eram diferentes, eram homens da verdade. Daí em diante, para ele acabou a desconfiança, entrosou-se com os daimistas tendo participado ativamente de todo o feitio e os considera aliados. O cacique Biraci e Nani Yawanawá já tiveram sonhos em que o Mestre Irineu e o Padrinho Sebastião, ícones do Santo Daime – ambos desencarnados – apareceram na aldeia.
Interação com outras tradições religiosas
Desde a abertura em fevereiro da Aldeia Sagrada, onde hoje está localizado o Centro de Formação e Memória do Povo Yawanawá, Biraci manifestou interesse em interagir com outras manifestações espirituais do planeta. Neste festival, além do Santo Daime estiveram presentes pessoas que cultivam outras linhas como União do Vegetal, Xamanismo, ayahuasqueiros independentes. Até um monge, com seu traje alaranjado, participando das cerimônias, dançando e brincando como um menino apareceu por lá. Trata-se do monge Dada Suvedananda, nascido nas Filipinas e responsável na América do Sul pela organização Ananda Marga, que está presente em 145 países do mundo, promovendo treinamentos e ensinando práticas milenares de Ioga e meditação. Dada trabalha com Ioga espiritual. Há 38 anos, pratica meditação e hoje medita quatro vezes por dia, totalizando cerca de três horas diárias. Viveu durante doze anos na África onde morou em 30 países. Há nove anos veio para a América do Sul residindo atualmente no Rio de Janeiro. Para ele, espiritualidade é comunidade e o dia a dia dos Yawanawá mostra o quanto eles são elevados espiritualmente.
Do Norte do México veio a cerimônia do Temascal (sauna sagrada) trazida pelo índio Teska, do povo Quatitil, descendente dos Aztecas. Ele nasceu em São Luis Potosí, santuário do peiote (planta sagrada dos índios norteamericanos e mexicanos) e apresenta a cerimônia juntamente com Adriana, a esposa brasileira. Teska conta que o Temascal é praticado pelos índios do Norte do México e Sul dos Estados Unidos (os peles-vermelhas), havendo registros em cavernas de sua existência há 40 mil anos.
No terreiro da aldeia Yawanawá foi montada a barraca de forma circular da sauna sagrada e durante todos os dias aconteceram sessões do Temascal, sempre acompanhado de cânticos apropriados, alguns da tradição original Quatitil. Segundo Teska, a barraca representa o útero materno, o retorno à vida intra-uterina. Também representa a noite de onde se sai para o dia, purificado. Do lado de fora da barraca é acesa uma fogueira na qual são colocadas pedras de três a cinco quilos até ficarem vermelhas. Estas pedras são colocadas no interior da barraca, bem no meio, e sobre elas primeiro são colocadas ervas aromáticas e medicinais – que espalham calor e perfume ao ambiente – e depois é derramada água sobre as pedras o que provoca um forte vapor de água que enche todo o ambiente.
Este procedimento é feito quatro vezes. Durante cerca de uma hora, 20 pessoas adentram à tenda. O calor é quase sufocante e o suor escorre em bicas. Enquanto isso, são entoados cânticos, qualquer um podendo participar. No final um banho no rio Gregório e uma agradável sensação de descarrego e leveza. O Temascal é uma pré-cerimônia ao uso ritual do peiote, adaptando-se perfeitamente como pré-cerimônia ao Uni ou Daime.
Yawá e as crianças
Pajé Yawarani – conhecido por todos como Yawa – é um índio que chama a atenção. Com 97 anos é o mais velho da aldeia e demonstra jovialidade, sempre animando as brincadeiras e danças, puxando as crianças para brincarem de roda, cantando ou rezando, além de participar das cerimônias do Uni e rapé. As crianças sempre estão perto dele e com ele se divertem.
O médico Bruce Rind e a esposa Lind Potter, que é enfermeira, são norteamericanos e vieram apreciar a festa, mas acabaram trabalhando muito, principalmente na área de fisioterapia, tendo atendido vários índios e repassado conhecimentos aos enfermeiros Yawanawá. Ficaram impressionados com a educação das crianças Yawanawá. Para eles, isto é resultado do respeito com que são tratadas pelos adultos. "Os Yawanawá são pessoas boas e felizes. As crianças brincam e cuidam um do outro, não se vê brigas. Adultos e meninos parecem ser iguais", disse.
Bruce também ficou impressionado com a jovialidade demonstrada pelo velho Yawa. Para ele, Yawa tem mais energia que um homem de 20 anos: "Ele nasceu, cresceu e vive nesta floresta e esta forma de viver natural lhe garantiu saúde física e mental. É impossível acreditar sem vê-lo, aos 97 anos com movimentos rápidos, pensamentos rápidos, olhos e ouvidos perfeitos, o dia todo dançando e ensinando aos meninos e adultos. Não vejo quando ele dorme. Sempre que estou no terreiro, seja de dia ou de noite, ele está aqui, sempre animado. Isto demonstra o quanto é importante viver de forma natural. Quantas pessoas pagariam tudo o que fosse preciso para terem saúde assim, permanecendo jovens até os 97 anos. Penso que ele vai seguir assim por mais uns 30 anos, mas, pela sua disposição, parece que não vai parar nunca" – analisou.
Artesanato em expansão
Os Yawanawá têm tradição em alguns tipos de artesanato, como cocares, pulseiras, objetos de barro. Mas, a convite da aldeia, o escultor brasiliense Delor Martins dos Santos Neto está ensinando a fabricação de objetos decorativos de madeira e móveis, uma forma de aproveitar restos de madeira, árvores caídas, possibilitando assim mais uma atividade sustentável na floresta. Durante toda a festa houve exposição e venda de artesanato Yawanawá e o destaque ficou para os objetos confeccionados já com a orientação de Delor. Segundo Delor, os índios estão aprendendo facilmente suas técnicas, pois já têm tradição em artesanato.
Registros do festival
Durante o festival também foi frenético o ritmo dos que documentavam o evento. Um documentário sobre a vida, o festival e os costumes do povo Yawanawá está sendo realizado pelo próprio Biraci em convênio com equipe de fora, além de um livro de fotografias.
O programa Câmera Record está preparando um documentário de uma hora sobre o Acre em que o festival será o tema principal. Ele será divulgado em rede nacional e para 150 países pela Record Internacional. Também farão parte do documentário as belezas naturais do rio Croa e da Serra do Divisor.
Segundo a editora da reportagem Márcia Regina o Acre é diferenciado. Tem a consciência do índio, do seringueiro e está retomando suas tradições. O repórter Alex Sampaio vivenciou todas as cerimônias e ficou bem impressionado com o efeito do veneno do Kampu em seu corpo. Segundo explicou, no início foi difícil, com vômitos, mas depois a sensação foi de limpeza e bem estar.
O repórter Alan Kronemberg da revista ‘Aventura e Ação’ está preparando uma matéria especial sobre o Acre e, mais uma vez o festival é a atração principal. A reportagem deverá sair na revista neste mês.
A Organização dos Povos Indígenas do Vale do Juruá (Opirj) também registrou muitas imagens do festival. Seu presidente Osmildo Kuntanawa elogiou o povo Yawanawa que "está dando exemplo de organização" – disse.