30 anos após Chico Mendes: o debate necessário para defender o seu legado!

Os 30 anos do assassinato do líder seringueiro Chico Mendes suscitaram uma série de atos e manifestações de solidariedade e reconhecimento a sua inestimável contribuição para proteção das florestas e dos meios de vida dos povos e comunidades tradicionais por toda a Amazônia. Neste ano, em particular, as ameaças que o governo do presidente eleito causaram manifestações com foco na resistência e defesa do  legado do seringueiro.

A imprensa nacional e internacional, organizações governamentais e da sociedade civil, entidades sindicais, além de personalidades do meio acadêmico, político e artístico, repercutiram o assunto, apresentando conjuntamente uma série de questões sobre o legado de Chico Mendes, com ênfase especial ao futuro das Reservas Extrativistas, que do ponto de vista institucional foi sua maior conquista, representando, à época, uma verdadeira mudança nos padrões de reforma agrária para a Amazônia, que veio depois a se constituir também como um dos principais instrumentos de política ambiental para controle do desmatamento na região.

A Reserva Extrativista Chico Mendes, maior símbolo do seu legado, é uma Unidade de Conservação Federal de Uso Sustentável, criada pelo Decreto nº 99.144/1990, localizada no Estado do Acre, possuindo uma área de 970.570 hectares, abrangendo sete municípios, Assis Brasil, Brasileia, Capixaba, Epitaciolândia, Xapuri, Sena Madureira e Rio Branco, onde vivem 1.824 famílias, distribuídas em 49 seringais.

Uma vasta literatura científica atesta que a Reserva Extrativista Chico Mendes se transformou numa verdadeira ilha de resistência ao desmatamento. Os mapas da paisagem do entorno à BR-317, por exemplo, evidenciam que a luta dos seringueiros, liderada por Chico Mendes, foi responsável por salvar quase um milhão de hectares de floresta tropical nativa em uma das principais fronteiras de expansão da agropecuária no Estado do Acre.

A Folha de São Paulo em 21/12/2018 publicou uma matéria intitulada “30 anos após Chico Mendes, seringueiros do Acre aderem à pecuária”, cuja análise se mostra bastante rasa e de certa forma irresponsável, que serve apenas para fortalecer o discurso dos ruralistas e a defesa da pecuária como meio de sobrevivência destas populações.

Temos que lamentar muito que diante da dimensão do legado de Chico Mendes, que se mostra hoje como uma causa global perante às mudanças climáticas, um dos principais veículos de comunicação do país produza um verdadeiro desserviço à sociedade.

A jornalista, dada a importância do tema para a proteção da floresta amazônica, deveria ter se preocupado em apresentar os fatos acompanhados das respectivas circunstâncias em que eles ocorrem, os esforços feitos e os verdadeiros desafios que a sociedade brasileira precisa enfrentar, ou seja, os elementos do debate que verdadeiramente importam, não só para defender o legado de Chico Mendes, mas também para contribuir com a construção de um modelo de desenvolvimento econômico para a região que associe justiça social e conservação da floresta.

É sabido que as reservas extrativistas, inseridas no contexto de uma economia capitalista de mercado, estão sujeitas à tradicional forma de expansão da fronteira agrícola brasileira, com a ocupação de terras virgens (privadas ou públicas), a extração de sua madeira de lei e a instalação da pecuária. Estudos apontam que em todos os estados da região, o desmatamento sempre valoriza significativamente a terra ocupada, no caso extremo do Acre, por exemplo, multiplica este valor por mais de 14 vezes, não sendo fácil encontrar soluções para este problema.

No caso da Resex Chico Mendes, outro agravante é a baixa produtividade dos seringais nativos e a deterioração do mercado da borracha na região que tem desencorajado os extrativistas e seus descendentes a se manterem na atividade.

Neste cenário, especuladores e pecuaristas que outrora tentaram ocupar as terras dos seringueiros, hoje desenvolvem modelos mais sofisticados de “acesso” à terra no interior destas unidades de conservação, transformando-as em verdadeiros berçários da sua pecuária de corte extensiva, onde transferem os seus processos de cria e recria do gado para os extrativistas, que muitas vezes ainda são autuados por isso.

É importante notar que esse processo é altamente subsidiado com recursos públicos, mesmo que de forma indireta, pois a maioria das fazendas que estabelecem relações de parceria agrícola com os extrativistas da Resex Chico Mendes são beneficiárias de crédito com juros subsidiados do Fundo Constitucional do Norte (FNO) coberto pelo imposto de renda dos brasileiros.

Esta mesma benevolência do Estado brasileiro com os pecuaristas da região não se observa com o financiamento do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), por exemplo, que além das atividades de fiscalização ambiental que lhe compete, seria responsável por promover ações de gestão e desenvolvimento econômico das reservas extrativistas, que permitiria portanto criar novas alternativas de renda para os extrativistas que não implicasse nessa tendência de desmatamento observada.

Frente a esse problema, nos últimos 20 anos o governo do Acre vem realizando um grande esforço fiscal para tentar combater essas distorções e criar novas oportunidades para os seringueiros da Resex Chico Mendes, investindo na estruturação de cadeias produtivas que garantissem mercado e agregação de valor aos produtos da floresta como borracha e madeira, subvenções econômicas no preço da borracha e outros produtos da biodiversidade e incentivos ao uso mais sustentável da terra já desmatada com a inclusão de tecnologias agroflorestais e plantios florestais.

Somente nos últimos oito anos, durante a gestão do governador Tião Viana, foram investidos mais  de R$ 50 milhões na Reserva Extrativista Chico Mendes em projetos vinculados à economia florestal, como apoio a elaboração de Planos de Manejo Florestal Comunitários, assistência técnica e extensão florestal, programas de capacitação em gestão de negócios e manejo florestal de impacto reduzido, infraestrutura de escoamento da produção florestal comunitária, incentivos ao plantio florestal e de agroflorestas e subvenção econômica para cadeias de valor florestais madeireiras e da biodiversidade.

Neste período, o Acre se tornou também um dos maiores produtores nacionais de castanha-do-brasil, sendo hoje um dos principais produtos de exportação do estado, fruto dos investimentos para implantação e ampliação da capacidade de processamento do produto nas plantas industriais de Brasileia, Xapuri e Rio Branco em parceria com a Cooperacre. Atualmente, essa cadeia de valor movimenta mais de R$ 50 milhões/ano somente na aquisição do produto in natura das comunidades extrativistas.

Mesmo diante de um quadro fiscal temerário para os Estados brasileiros, o governo acreano jamais se furtou de buscar soluções para o financiamento de programas nas reservas extrativistas e outras unidades de conservação localizadas no território acreano. Já foram assegurados para a próxima gestão R$ 195,6 milhões a partir de fontes de recursos não-reembolsáveis (Banco Alemão KfW, Fundo Amazônia e Banco Mundial/Ministério do Meio Ambiente) para financiar projetos ambientais e florestais, sendo resultado, principalmente, do empenho pessoal do governador em diversas missões nacionais e internacionais que por diversas vezes foram objeto de críticas severas da imprensa local, que se atentavam apenas ao custeio dessas agendas.

Lembrando que se contabilizadas todas essas iniciativas governamentais, não daria uma fração dos recursos que são aplicados anualmente para subsidio da pecuária na região, que traz como efeito o aprofundamento das desigualdades sociais e desmatamento da Reserva Extrativista Chico Mendes, portanto, esse é o debate que deve ser colocado com muita clareza para a sociedade brasileira que deseja proteger a Amazônia.

Se queremos de fato proteger e desenvolver a Amazônia, criando oportunidades de trabalho e renda para os povos e comunidades tradicionais e levar adiante o legado de Chico Mendes, o debate é muito mais amplo, e de nada adianta conversar com um punhado de seringueiros que aderiram à pecuária sem expor o contexto a que estão submetidos, devendo ser entendidos apenas como a “solução” que o mercado está dando para a região enquanto perdurar a inoperância e injustiça do Estado brasileiro.

 

Carlos Edegard de Deus  é secretário de Meio Ambiente do Acre*

João Paulo Mastrangelo é professor da Universidade Federal do Acre e ex-secretário Adjunto de Meio Ambiente do Acre*

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