Desde criança tenho uma “caída” sentimental pela arte. Apreciava a dança clássica sem saber exatamente o que era clássico, mas gostava. Nunca corrupiei pela rua feito bailarina, dançava na imaginação mesmo, dado que minha colega de infância só queria brincar de dar aula, sendo ela mesma a professora.
Na adolescência a música flertou gravemente com o meu coração e entrei num curso de violão para iniciantes. Não vingou. Eu me atrapalhava toda no movimento das cordas, os nomes dos dedos não eram propriamente os que aprendi em criança brincando com as mãos. Só o mindinho que tecnicamente é chamado de mínimo guardava relação entre as palavras, nos demais eu perdia a inteligência.
Depois disso passei a desconfiar das propriedades daquilo que desconheço. O ano de 2020 nos deu a exata medida do poder da palavra e do quão é importante questionar a verdade oculta das coisas. O SARS-CoV-2, além de fazer suas vítimas, descortinou realidades antes ignoradas, no entanto as opiniões rasas e ideologicamente frágeis sobre a ciência dividiram as pessoas.
Ao invés de se colocar luz nos cuidados e na cura da doença, as pessoas passaram a perguntar com hostilidade se as pessoas eram contra ou a favor (de.). Levantaram-se os muros da obscuridade porque não é uma simples questão de “opinião”. Enquanto isso, o mal-estar físico, moral, emocional e espiritual foi se alastrando pelo planeta. Muita “informação” virtual foi sendo plantada e implantada em tempo real, formando uma aura de insegurança a respeito da eficácia da vacina, por exemplo.
A veracidade da palavra de muitos líderes mundialmente influentes foi questionada e colocada em xeque. Muitas máscaras caíram deixando as faces nuas sob o sol. A mentira que tomou forma de verdade acabou por revelar em essência o que estava escondido. Assistimos, com as mãos frias e trêmulas, muita violência contra indígenas, negros, mulheres, crianças e contra o meio ambiente. O cobertor do mercado ficou mais curto deixando à mostra a pobreza relativa dos ricos e a miséria absoluta dos pobres.
Enquanto a cura da Covid não chega, eu custo a acreditar que a ciência me enganou e que a ignorância transformou as verdades cientificamente comprovadas em poeira tóxica de laboratório. Galileu, Newton, Descartes, Darwin, Da Vinci, Marie Curie… Eu custo a acreditar que sou uma forasteira na minha própria pátria. Passei a vida inteira acreditando que Deus se manifesta na extraordinária arte da descoberta e invenção científicas. Portanto, acreditei na razão da ciência, na intuição da arte e na consciência da religião como faces de um único corpo integralmente vivo. E agora o que direi? Cheguei a gritar alto e com força um palavrão, mas merda não é apropriada para esse tipo de situação.
Esse 2020 foi um ano de despedidas e eu mudei: parei de assistir televisão. Reaprendi a olhar e vi algo especialmente novo e desajeitado. Eliminei as gorduras que bloqueiam o pensamento das coisas que essencialmente enriquecem uma jornada evolutiva. “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada” (C.L).
Para 2021 desejei – naturalmente no meu direito de fazer aquele único pedido a Deus no instante zero da virada – desejei que a humanidade aprecie o mundo com o olhar que vem de dentro, esse olho/ouro interior que não trai o sacro espírito instintivo de sobrevivência e que nos torna humanos de verdade, já que nos disseram que a vida é uma grande mentira e dou graças porque em 2020 eu vivi.
Bethe Oliveira é economista, especialista sênior em planejamento estratégico e gestão pública e escritora de Loucas e Bruxas, Bruxas e loucas: contos e poeminhas, pela Editora 3 Serpentes