Quando se vê um russo dando boa noite para um apurinã em uma aldeia yawanawá é porque o Mariri Yawanawá começou. A união e a religiosidade são marcas dessa festividade na aldeia Mutum, na Terra Indígena do Rio Gregório.
“Nossa espiritualidade nos dá segurança e paz”, diz Matsini Yawanawá, jovem líder espiritual, seguidor dos ensinamentos de Tatá, um senhor de 90 anos e muita força. De fato, o povo yawá precisa de cada sopro de segurança no momento em que se ergue e caminha ainda mais em sua organização.
Ao longo da História, diversas culturas têm seguido caminhos diversos e por vezes entrado em choque entre si. Com o povo yawá não foi diferente. Pelas constantes ocupações na Amazônia, por pressões econômicas e sociais, os hábitos e costumes indígenas foram se desintegrando.
O fato preocupava e entristecia os velhos e últimos conhecedores de antigos ritos do “Povo do Queixada” (yawanawá). Raimundo Luis Tuin Kuru, pai de 17 filhos, dos quais muitos hoje ajudam a administrar a Terra Indígena, foi dessas pessoas que passam a vida a colher conhecimento, e temia que tudo se perdesse e seu povo se tornasse sem alma como “um rio sem peixe”.
Falecido em 2010, Tuin Kuru teve a chance de ver ainda o reacender da chama de sua cultura em 2002, com a realização do 1º Festival de Manifestações e Tradições do Povo Yawanawá. Seu filho Joaquim Tashkã Yawanawá conta que naquele momento o velho líder declarou “agora posso morrer feliz”. “Já fazia mais de 70 anos que muitas das cerimônias não eram praticadas”, dizia com os olhos cheio de lágrimas Tuin Kuru.
Hoje ao longo do Rio Gregório, no município de Tarauacá, no Acre, existem sete aldeias yawá organizadas em duas instituições próprias de seu povo, a Cooperativa Agroextrativista Yawanawá – Cooppyawa e a Associação Sociocultural Yawanawá – Ascy. Prova de compromisso de suas lideranças com a autonomia social e cultural, acrescida à vontade de manutenção de suas tradições e valorização identitária, com os espíritos da floresta sempre ao lado.
Cantos, brincadeiras e união
Assim, entre os dias 20 e 28 de julho deste ano, na Aldeia Mutum foi realizado o Mariri Yawanawá, com apoio do governo do Estado do Acre e da Aveda (empresa norte-americana de cosméticos que compra o urucum da comunidade). Uma semana de brincadeiras, curas, cantos e danças, a própria magia da manifestação cultural.
Dias de encontro e convivência lembrando a beleza da diversidade humana, com a reunião de pessoas de outras etnias do Acre junto com gente de outros países e estados. “O ecoturismo pode auxiliar na renda das comunidades indígenas”, afirma o diretor da Assessoria Especial Indígena, Marcelo Piedrafita.
Às 4h de uma madrugada fria, incomum no Acre, após uma noite de cantos e uni (ayhauasca), um senhor de braço amputado, sentado em volta de uma fogueira conta sua experiência com a bebida sagrada. Como se estivesse ouvindo a uma aula da vida, um jovem paulista estava atento a todos os passos vividos por aquele yawa da aldeia Sete Estrelas.
Eram ali dois visitantes demostrando na prática o objetivo daquele Mariri, conhecer e presenciar a força de uma cultura viva na Amazônia brasileira. “A coisa mais bonita que o Brasil tem são os povos tradicionais”, diz o Txai Tashkã sentando no terreiro enquanto um círculo de pessoas gira entoando cantos em homenagem às entidades das matas.
Thaskã, que atualmente é presidente da Ascy e um dos líderes na Terra Indígena, dá o tom da festividade. “Essa semana é para gente, para o povo yawá se encontrar, conversar. Os visitantes são nossos convidados para conhecer nossos costumes”, afirma.
E por toda a aldeia Mutum é isso que se pode encontrar, ao amanhecer nas três cozinhas abertas para os visitantes, banana, mingau, mamão e até carne de porco da mata. Mas o principal, pessoas comendo juntas e conversando, planejando a pintura que querem fazer ainda pela manhã, as brincadeiras e cantos do restante do dia.
Esta semana teve comprometimento de cada casa e morador do Mutum e das outras aldeias, todos ajudando na logística do evento. E no comando dessa comunidade a “Chefa” Mariazinha Luiza Naiweni Yawanawá, cacique e uma das filhas de Tuin Kuru. Há algo de feminino na floresta que permeia as margens do Rio Gregório, pois as familiares da Chefa também ouviram um chamado para ajudar a liderar seu povo.
{xtypo_quote_right}O governo do Estado dá apoio para a produção de artesanato tradicional por meio da Secretária de Políticas Públicas para Mulheres (SEPMulheres). Atualmente são 5 casas de produção construídas{/xtypo_quote_right}
Nedina Luiza, Edina Luiza, Maria Julia Meni Yawanawá, parentes de Mariazinha, têm papel importante na aldeia e nessa semana tocam a organização do Mariri. O que cada cozinha está precisando, a ordem e horários das brincadeiras, limpeza e acomodação de todos.
“Nosso povo é uma grande família” diz Nedina, enquanto cuidadosamente trançava miçangas para uma nova pulseira. A jovem mulher, formada em Letras, mostra os ensinamentos de seu avô, Tuin Kuru, sobre a riqueza de sua cultura: “o bonito é ter o que comer e o que oferecer”.
A artesã ficou responsável pelo entretenimento: “Amanhã teremos duas brincadeiras”, avisa. “Taepui (pisar nos pés), por exemplo, é pra quando você tá paquerando alguém”, diz.
“Essa liderança feminina não é comum para as mulheres yawanawá”, afirma Meni, também formada em Letras. Ela acredita que isso tenha sido um “presente do criador”, já vindo dos tempos de sua avó, “através de sua bondade trazia todo mundo pra sua casa”, continua.
Passando suavemente urucum nos lábios, a cacique Mariazinha Naiweni dá uma mostra de como trata sua liderança na aldeia, “é uma responsabilidade e tanto”. E continua: “o fato de ser mulher pede uma coisa muito importante: tolerância e paciência”.
Pra encerrar a entrevista, Mariazinha diz bem firme “eu não acho que o mundo lá fora é melhor que aqui”. Ela sabe do que fala, o urucum que usou como batom antes da conversa é vendido há quase 20 anos para uma empresa estadunidense.
A cultura da natureza
Outra mulher que tem papel importante é Hushahu Yawanawá, a filha de Tuin Kuru que desafiou a tradição e buscou os ensinamentos da pajelança com um dos pajés mais antigos, Tatá. Hoje já são 10 anos de experiência, nos quais conseguiu convencer o pai e outros sábios da aldeia de sua busca.
Nesses ensinamentos, Hushahu encontrou algo além da cura, pediu e achou a beleza da natureza, que vieram a partir de desenhos, os kenê. Na “força do uni (ayahuasca)”, a pajé relata “quando olhei para as árvores, vi uma borboleta, que chegou perto e abriu as asas”.
Aquelas asas abertas se transformaram em uma das marcas do povo yawanwá, pintados nos rostos e corpos, também transformado em arte, como pulseira, colar além de outros acessórios.
A arte yawanawá ainda ganharia outra inspiração. Hushahu tomou saliva da jibóia e passou 24h sem tocar em nada. “Comecei a ver os espíritos da floresta, eram muitos, ia desenhando eles nas árvores”, diz, enquanto pintava um rosto, com voz calma, suave, típica de quem transmite a força de si em cada palavra.
Esses traços são mais que desenhos, Hushahu explica que cada pintura traz a força e segurança da natureza para a pessoa pintada. “Através do uni, existe uma energia que passa das minhas mãos para a pintura”, afirma.
Esse resgate da pajé, espiritual e artístico, transmite bem o momento em que a comunidade Yawanawá do Rio Gregório passa. Buscam o ensinamento com as forças da floresta e saberes históricos de seu povo, reafirmando sua cultura e deixando claro para o mundo: na Amazônia existe um povo ativo e com muito pra viver.
Com 90 anos de vida e experiência, o pajé Tatá, que pula pelo terreiro, canta e usa rapé, manda sua mensagem antes de sair para puxar mais um canto: “somos todos irmãos, estamos todos na mesma energia”.
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