São inúmeros os caminhos que ligam o Brasil, seja por água, terra ou ar, tão incontáveis quanto as histórias do nosso povo. No Acre, a narrativa é andarilha, passeia por piquetes, varadouros e até rodovias, como a BR-364, que atravessa a floresta e tem papel importante, estabelecendo conexões entre as pessoas.
Na beira de um açude cheio de patos, com os primeiros raios de sol atingindo a grama e a pequena casa à beira da estrada, é possível ver um homem, de estatura baixa e um sorriso largo, com o terçado na mão direita e botas na esquerda. É Francisco de Assis da Conceição, 54 anos de austeridade no campo, preparando-se para a roça, sustento seu e de sua mãe. Mas antes de partir nos chama para contar um pouco de sua vida: “Pode subir”.
Antes de chegar às margens da BR-364, há quatro anos, Francisco vivia no Seringal Tocantins, ao longo do Rio Acuraua, que atravessa a rodovia no município de Tarauacá. A partir dos 15 anos de idade começou a fazer o caminho pela floresta que hoje seria o corredor que corta o Acre. “Antes da estrada era um caminho, uma picada. Tinha muitos bichos violentos, muita onça, muita caça”, lembra.
Em 1968, para fazer os bueiros da BR-364, a gente derrubava a paxiúba, abria no meio, tirava o miolo e amarrava com envira. Assim virava um cano que se transformava num bueiro – Engenheiro Fernando Moutinho
Assis, então jovem, nascido na floresta, passou a acompanhar o pai, Delmiro Ozório, nas viagens para compra de produtos que seriam vendidos para os demais moradores do seringal. Pai e filho faziam o trajeto conduzindo um comboio de até três bois. “A gente levava cinco dias pra chegar em Tarauacá, comprava as coisas e era mais cinco dias voltando para a entrada do seringal, depois eram outros três dias até o último morador”, explica.
Quando se ouve alguém que tratava o tempo cotidiano não em horas, mas em dias e semanas, há que se ficar atento para entender os caminhos por onde a vida leva. “Carreguei muita gente na rede, com os paus nas costas, gente doente de cobra, ofendido de inseto”, conta, preparando-se para mostrar que a vida nunca foi fácil por aquelas bandas.
“Eu e outros três homens levávamos um rapaz na rede, quando chegou no meio do caminho ele morreu. Saímos do Acuraua e depois de dois dias, chegando no Pirajá (igarapé próximo a Tarauacá), ele não resistiu”, relata Francisco, sobre a morte de um amigo picado por jararacuçu. Ele ainda conta mais um amigo e um sobrinho mortos por picada de inseto e confessa: “Era muito difícil. Eu nem sonhava que esse varadouro poderia ser uma estrada”.
O que Francisco de Assis nem imaginava, Francisco Hernandes da Silva ajudou a construir. “Eu ajudei foi no machado”, conta Hernandes, começando sua epopeia na Floresta Amazônica, tirando árvores, abrindo 20 metros pra cada lado e cinco de pista, carregando companheiros na rede e vendo o futuro chegar e passar.
Na beira do asfalto, enquanto seu filho arrumava as caixas com mamão, banana, abacaxi e abóbora para serem vendidos pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o ancião de 73 anos, nascido no Amazonas, na boca do Rio Liberdade, desanda a contar, passo a passo, como viu os homens que abriam a BR chegar perto de onde morava e como passou a fazer parte da equipe que, com as mãos e no braço, transformou o Acre.
“Cheguei aqui com 15 anos, morava mais meu futuro sogro. Um dia vi os caras que chegaram fazendo a picada dessa estrada, uns acamparam lá dentro de casa, outros na casa de farinha”, diz apontando para dentro da mata, onde mora até hoje, na Comunidade São João, lote São Francisco.
E continua, no meio da estrada já asfaltada, contando como os trabalhadores tinham que derrubar as árvores e seguir abrindo caminho. “O Sargento Mocovi tirou [começou] daqui, foi sair com um caminho no Rio Boto. Nós desmatamos tudo no machado. O pau podia ser a grossura que fosse, nós íamos buscar no fim da raiz. Tinha que ser 15 homens pra derrubar a árvore, e não podia deixar ela cair atravessando a estrada”, relata eufórico, como se ainda estivesse em meio às madeiras rangendo ao cair, a lama na cintura, às máquinas e seus motores barulhentos e aos companheiros gritando.
Ainda agitado, querendo dar a entender o que era a luta que enfrentavam, Hernandes vai finalizando a conversa: “Quando estávamos pra terminar aqueles 500 metros, 400 metros, mil metros, o avião de vez em quando vinha, passava bem baixinho, observando de que jeito estava o serviço. Porque se estivesse mal feito não recebíamos, não podia ficar um rolinho de pau na estrada”.
Hernandes segue abrindo caminho e contando: “Nós fomos trabalhando daqui até o Rio Acuraua”, onde estava Francisco de Assis, sonhando um dia poder chegar em Tarauacá sem ter que viajar durante cinco dias. Para isso contou com a ajuda de gente como o outro Franciso, que no machado abriu uma estrada que costura o Acre e também deixou Assis a poucos minutos de sua nova namorada.
Ir e vir: a batalha das mulheres do seringal
Severina nasceu nas cabeceiras do Rio Tarauacá, acima do Jordão, no Seringal Independência. Conta rindo seu caminho, de seringal em seringal, até que “varamos, lá do seringal Santa Luzia, aqui pro Rio Acurauá”, onde seu marido, Delmiro Ozório, e seu filho Francisco trabalhavam como carregadores.
Produtos vendidos na beira do roçado
“Cansei de vender pamonha nas costas, saia às três da madrugada e ia vender em Tarauacá. Hoje você enche um caminhão de abacaxi, de banana e vai vender em Rio Branco”, conta o produtor João Cobra