Títulos

Não creio que a pandemia tenha vindo para nos ensinar alguma coisa. Assumir essa suposição seria por demais moralista e maniqueísta, levando-nos, de novo, às oposições tão arraigadas à nossa sociedade. Por uma pobreza de interpretação, sobretudo no campo da política, quase tudo o que se pode ouvir e ler acaba caindo nessa “roleta” em que só há duas casas, duas opções somente. Numa espécie talvez de revés dos algoritmos (ou não) estamos sendo traduzidos por gosto ou não gosto, bom ou ruim, 0 ou 1. Mais do que nunca, as palavras estão cerceadas às suas formações discursivas, e utilizá-las significa fazer parte de um lado ou de outro do discurso, como nos ensinou Foucault. 

No entanto, um fato é certo: muitos de nós continuam se comportando como se fossem os únicos nesse universo em meio a tantas mortes. Somos poeira cósmica e, mesmo assim, criamos meios de nos sentir mais admiráveis do que já seríamos, e eu me pergunto, de que me adianta ser de forma distinta em meio ao caos? De que vale a nobreza do ouro em meio ao naufrágio? Ter um séquito de títulos abaixo da minha assinatura, dizer toda a minha vida acadêmica ali num espaço que por si só já é destinado a isso? Tentativa de autoafirmação? Mostrar para “pares” que agora pode-se ser tão bom ou melhor do que eles?     

É um fato que os homens fazem distinções e delas se aproveitam para criar hierarquias das mais diversas. Uma assinatura já é uma forma de informar ao mundo quem você é. Somos gregários e a nossa necessidade de pertencer a um grupo, a uma classe, torna-se simbolicamente quase um imperativo de vida, mas a diferenciação pretende nos dar aquela aura que nos separa dos míseros mortais. 

Os títulos de reis, príncipes, imperadores, duquesas, etc. confortaram os nomes daqueles que não eram simplesmente nomes, para que fossem algo além dos demais e, por isso, sua insígnia, símbolos de que eles estavam quase além do bem e do mal, tornaram-nos, talvez, mais temíveis do que poderiam ser. Os brasões, estandartes e todos os seus ornatos serviram na Idade Média não apenas como formas de identificação de famílias, estados etc., mas formas de intimidação de adversários. Uma breve incursão na heráldica das nações e estados demonstra isso: fortificações, animais ferozes e armas constituem apenas alguns desses elementos que demonstravam aos contendores os supostos poderio e força daqueles que os ostentavam. Olhe para uma torcida organizada de futebol e perceba o quanto isso ainda é tão presente em flâmulas, faixas e bandeiras. Marcas, nomes e títulos aproximam-se de forma quase inequívoca quando a questão é representar o que se presume ser. 

Mas todo esse universo existe para nós como um conto de fadas e, ao mesmo tempo, faz parte do nosso imaginário quase medievalesco. A Suécia deu exemplo ao abolir os pronomes de tratamento. No Brasil, médicos, advogados e dentistas são chamados de doutor. Uma lástima. Um projeto do ex-senador Roberto Requião previa acabar com todos os títulos nobiliárquicos e deixar somente os tratamentos de “senhor”, “você” ou “tu”. Afirmou o político paranaense em entrevista: “Esse pessoal todo, no Ministério Público, no Judiciário e outros agentes públicos, se acha com o direito de ser tratado como excelência. Isso é um resquício da monarquia. Eles se atribuem verdadeiros títulos nobiliárquicos e, num interrogatório, eles humilham o interrogado, que é um cidadão igual a eles. Cabe a eles só, como servidores públicos, prestar um serviço de qualidade e respeitar os outros. E o respeito que é devido a eles deve derivar da qualidade do serviço que prestam e do respeito que têm pelos outros”. 

Muito justo o projeto, sobretudo num país em que as pessoas ainda dizem “Você sabe com quem está falando?”. Resquício de um imaginário colonial que pretende colocar o “cidadão comum” sempre em posição de inferioridade. Precisamos ser mais humildes, ostentar menos. Quando morrer, quero ser lembrado apenas como professor, apenas – e é o suficiente -, alguém que amou sua profissão como profissão de alguém que ensina com sabor e algum saber, e não precisou se esconder atrás de evocativos de “Dr.”, como as pessoas mais humildes “sabiamente” fazem ao reconhecer alguém cujo título ou poder aquisitivo possa ser maior do que delas. 

Acabo de receber uma mensagem de e-mail de um colega, e nela observo que seus títulos, recém-adquiridos, abaixo da sua assinatura, são mais extensos que o teor da mensagem. Pobre Brasil. Pobres doutores.       

Milton Chamarelli Filho é professor no curso de Jornalismo na Universidade Federal do Acre

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