Gente que vence

Certa vez entrei numa longa discussão sobre meritocracia. Meu interlocutor argumentava que a persistência e o esforço pessoal são determinantes para o “vencer na vida”, aquele estágio onde o indivíduo se considera plenamente realizado com a própria jornada e feliz com o quão longe chegou. Nunca acreditei nisso. Eu dizia que não há força de vontade capaz de superar desigualdades tão gritantes entre realidades absolutamente distintas, sobretudo em um país como o nosso, com crescentes e graves problemas sociais. Até que conheci um jovem policial militar do Acre, ainda em formação, que me contou sua história, num misto de comoção e orgulho, e me fez repensar algumas certezas.

O nome dele é Heriberto Ribeiro de Araújo. Com 34 anos de idade, é aluno-soldado da Polícia Militar do Acre (PMAC), no curso de formação que está em andamento na corporação desde 2021. Natural de Feijó, no interior do estado, o militar nasceu em uma região de difícil acesso, distante seis dias de barco, “mata a dentro”, da sede do município, em um seringal chamado Alto Bonito, onde viveu até os nove anos de idade com o pai, a mãe e quatro irmãos. Todos até então analfabetos e praticamente isolados do mundo, não tinham vida fácil e tampouco perspectiva de dias melhores.

“A gente não conhecia o mundo civilizado. Quando chegamos em Feijó, achamos tudo muito estranho. A cidade era um mundo novo. Acredita que tomei água gelada pela primeira vez com nove anos de idade? Eu e meus irmão vimos o primeiro fusca e ficamos espantados, ‘um jabuti gigante’, era uma novidade pra gente”.

Heriberto conta que iniciou seus estudou com quase dez anos, em 1996, ainda no interior. Pouco tempo depois, em 1997, ele e a família vieram para a capital Rio Branco “tentar a sorte”, mas como não tinham dinheiro para passagem de avião, já que a estrada estava intrafegável à época, fizeram o trajeto em um “búfalo”, avião usado pela Força Aérea Brasileira (FAB) para levar medicamentos aos municípios isolados.

A família foi morar em uma casa pequena de madeira, em um bairro periférico. O pai conseguiu emprego de zelador no aeroporto, enquanto a mãe fazia “bicos” de doméstica para suster a casa. Ele e os irmãos, atrasados no estudo e com o perfil da gente simples que “veio do mato”, sofriam bulling.

“A gente era ‘alugado’ por ter saído da zona rural, tratavam a gente diferente, chamavam de ‘perebento’, seringueiros”.

Mas, Heriberto tinha um sonho. Aprendeu no Clube dos Desbravadores, projeto social da Igreja Adventista que sua família frequentava, os conceitos de hierarquia e disciplina. Lá ele fazia “ordem unida”, aprendeu a marchar e teve o primeiro contato com os costumes militares. Entre os 18 e 19 anos teve que trabalhar durante o dia para ajudar a criar os irmãos, enquanto estudava à noite no antigo Telecurso 2000. Trabalhou em padaria, entregando pão de madrugada nos bairros, depois em comércio, foi quando conheceu um sargento da PM que foi mais uma inspiração para seu crescente desejo de ser militar.

Via o policial chegar fardado, mas com sua escolaridade baixa não imaginava que um dia conseguiria. “Eu sem sabia o caminho das pedras, como fazer pra chegar lá. Meu irmão já fazia faculdade na Ufac, e me falou de um pré-concurso, foi quando consegui pagar o primeiro mês e começar a estudar”. Ele conta que o resto foi “golpe”, pular catraca em ônibus e se esconder para conseguir fazer o curso. “Era errado? Era! Mas meus pais não tinham dinheiro pra bancar, então a gente ia como dava. O pessoal chegava para cobrar, a gente era o primeiro a sair”.

Não tinha acesso fácil a internet. Ele relata que conseguiam estudar usando a internet da antiga Floresta Digital, com os netbooks que ganharam do governo. “A gente saia caçando sinal de internet, que era muito ruim, para baixar conteúdo. Era com muito esforço, meus pais não tinham nem noção do que era concurso público”. Em 2009 tentou o primeiro, para a PMAC, mas não conseguiu. Em 2011 ele e os irmãos fizeram concurso para a PM do Amazonas. Um deles foi aprovado, e hoje é cabo no estado vizinho.

Nosso personagem continuou tentando. Em 2012 bateu na trave, por dois pontos não foi classificado. Mas em 2017, já na idade limite de 30 anos, fez quase 80 pontos e ingressou no cadastro de reserva, vindo a ser convocado a tomar posse na turma de 2021. “Sou grato a Deus. Ralamos muito no Curso, a gente sofre um pouco, mas estou onde sempre quis estar. Minha melhor virada de ano, enquanto alguns reclamam, foi aqui na Polícia Militar, de serviço na Operação Papai Noel”.

Hoje, Heriberto mantém o sonho de fazer carreira no militarismo. É faixa roxa de jiu-jitsu, esporte que conheceu em um projeto social, e já competiu profissionalmente até fazer uma pausa quando ingressou na PM. Ele se considera um cara de sorte, mas também atribui ao seu desejo por dias melhores o lugar que está conquistando no mundo.

Quanto a mim, ainda não sei se acredito em meritocracia. Mas tenho muita fé nas pessoas que, contrariando todas as expectativas, saem de uma realidade ruim e chegam no seu lugar ideal, de cabeça erguida e sem perder a esperança. Essas pessoas, que fazem um esforço sobre-humano para não ceder ao conformismo e não se entregam, mesmo sabendo que jamais competirão de igual pra igual com aqueles que nasceram com todas as oportunidades e meios. Essa é a gente que vence, que chega lá!

Joabes Guedes é jornalista e sargento da Polícia Militar. Trabalha na Assessoria de Comunicação da PMAC

 

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