Diário das coisas incomuns

Pandemia. Humanos sob o domínio do vírus, um corpo invisível que toma conta do mundo causando tensão, desespero e morte. Conta-se que veio da China, mas também pode ser presságio dos céus. Destino? Não se sabe ao certo, apenas se desconfia pelas entrelinhas que escorrem das notícias a todo instante.

As opiniões quanto aos desígnios de Deus e o verso do bordado do sistema que move o mundo se contradizem em enumeradas visões de realidade. Sim, não, tudo ou nada é a mesma coisa em substância. Ver é mais do que enxergar, há um sensor de visão em todos os sentidos humanos que reconhece as singularidades dos campos de conflito. Immanuel Kant, naturalmente, também se perguntou: como saber se o que vemos com os sentidos realmente está lá? Para o filósofo, tudo nos chega a priori através do tempo e do espaço. A função dos sentidos em Kant contribuiu para o princípio da individualização em Nietzsche. Em síntese, o que nos torna criaturas separadas é o tempo-espaço. Cabe ao imensurável encontrar o elo que nos liga ao milagre, não ao destino.

No início deste século especulavam-se a ascensão do pensamento sistêmico e as ciências abriram frestas para a intersecção de realidades à base de uma teoria, cuja matemática complexa revelou a natureza da vida e da autocriação. A pandemia nos liga a esses impulsos evolutivos e aquilo que parece solto, aos pedaços ou fora do lugar são apenas conexões do micro com o macrocosmo.

Na minha ignorância genuína, tomo ciência do desarranjo planetário e procuro recordações oníricas da noite anterior, enquanto dou com a mão no meu novo Diário. É a hora de escrever sobre o meu dia no mundo. É o mundo ou a gente que acontece? Acontecer é o ato de existir em consciência, independente da nossa vontade. Pensar o mundo é um ato de criação e destruição voluntários. Não há, portanto, um “eu” destituído de realidades. A inquietação da transitoriedade das coisas faz mover a minha mão sobre o Diário na tentativa do meu “eu” se entrelaçar à sagrada teia da vida.

Diário é um cofre que só cabe coisa de muito valor. Guardam-se palavras para o passado não morrer (em absoluto) de esquecimento – é hoje e todo dia será. Vasculho a memória, nenhuma música com ritmo novo ou uma descoberta biomolecular para compor a primeira página, tudo que é de mais importante deve vir primeiro, mas a mente está pálida, enfadada e cheia de redemoinhos, não há começo sem fim.

A capa é colorida e sobre o azul de nuvens alegres brilham espaçados corações disformes, seis trépidos órgãos carmesins fora do corpo pedindo oscilação. Meu coração é pequeno demais para emoções muito grandes, tipo uma flor num imenso jardim ou um grão de areia perdido no deserto. Procuro as fissuras do tempo e nada, nenhum símbolo me ronda a cabeça.

Eu, que nunca rabisco uma tola lista de compras, faço anotações diárias sobre as coisas acasuais, criando conexões entre acontecimentos, significados e emoções como quem remenda uma roupa velha carcomida por traças. Tudo acontece por si sem que nada escape à justeza do divino, essa é a Lei.

Me concentro na solidão da folha em branco e sigo-a devagar, abandonando a poeira da roda em movimento e o couro velho largado do corpo, marcando o chão feito pegadas no barro úmido. Quem conhece o caminho que já percorreu? É natural ter um animal selvagem cheio de vitalidade dentro de si brigando com o liminar do organismo. Eu sinto tanto a perda prematura das ilusões, só a idade para fazer isso com a gente, esse arrependimento do tempo, essa revolta involuntária, só as coisas anormais fazem sentido dentro da aparente normalidade.

Olho para o círculo de que sou o centro e, por Deus, na extensão da circunferência não há lembranças sobre se choveu, se me doeram as costas, se tive uma grande surpresa ao ver minhas rugas de soslaio no espelho da sala, se me mordi de desejo, se senti uma angústia pungente, se o governo pagou a bolsa de estudos, se houve alguma alteração na curva geométrica das mudanças climáticas, se ocorreu alguma chacina no bairro ou se descobriram o assassino do último feminicídio. Penso apiedada na morte, até Jesus foi brutalmente assassinado, oh meu Deus! “Se” deixa as coisas tão possíveis que se…

Nada de retumbante movem meus dedos sem que a caneta esteja na mão, apanho-a em cima da mesa da sala, escolho a esferográfica marrom pensando na pena de ganso, no nanquim, nas folhas de papiro e em como a escrita sustenta pesadamente as mãos fabulosas da pujante obra humana. Penso. Imagino. Quem escreveu a Bíblia?

Platão deu vida a Sócrates. Quem concedeu vida eterna a Javé? O que de tão bom e belo riscam as páginas do livro sagrado que alçou o judaísmo e o cristianismo, influenciou o Islã e, paradoxalmente, justifica tanta guerra em favor da paz da terra santa?  O que pensou a mente que plantou na imaginação de Michelangelo o milagre da “Criação de Adão”, o temido “Juízo Final” e o fez tirar da pedra a incrível beleza de “Pietá” e as feições de “Davi” e ‘Moisés”? O narrador do sacro enredo seria o próprio “Senhor”, o “Todo-Poderoso” com sua mão invisível?

A Bíblia é um desmesurado tesouro, um acervo histórico de mais de 3 milênios antes de Cristo. As primeiras páginas do Antigo Testamento são compostas pelo nada, coisa nenhuma e depois por todas as coisas do céu e da terra. O Nazareno, considerado subversivo pelo Império Romano, nunca escreveu uma linha das que constam no Novo Testamento; todavia, apócrifos do “O Evangelho de Maria Madalena”, por exemplo, foram apagados pelos próprios cristãos. O que teria a mulher de tão profana para não merecer lugar na Palavra de Deus dita ao mundo? Mais uma Maria silenciada.

Madalena foi vítima do machismo exarado de Pedro, os estribilhos que dela efluíram segredam uma parte célebre da vida do Mestre que até os nossos dias é desconhecida. O que Jesus teria ensinado singularmente aos seus discípulos? Suspeito que Maria, a mais amada das mulheres pelo Salvador, anunciou o verdadeiro poder do Pai. Ela viu o Filho do Homem depois de morto e falou com Ele.  E eis que Ele lhe fala: Bem-aventurada sejas (Tu, mulher), por não teres fraquejado ao me ver, pois onde está a mente há um tesouro. Ora, Jesus ensinou aos seus discípulos a ter a visão, não aquela que se vê com os olhos, a alma ou o espírito, mas o que se vê com a consciência que está entre todas as visões.

O dia nunca é cego, sempre há situações que ligam presente e passado, pessoas e lugares, efeito e causa. Entre o preto e o branco existe um arco-íris de cores. Nada se sabe sobre o amanhã, imagina-se. O relógio soa na parede, meia-noite é ontem ou amanhã? Um dia desses aprendi a ter medo do tempo e de outros fenômenos desconhecidos que se assemelham ao fim impassível, os quais antes eu ignorava. Me tornei uma alma inquieta e medrosa.

Cadela parindo na sarjeta não vi. Na padaria, o dinheiro passa de mão em mão no vai e vem da boca do caixa. Quantas frases olvidadas e a mente revolve ao café da manhã, ao dinheiro em forma de pão. Dinheiro é o lugar onde o homem se prendeu. Em cada nota estendida sobre o balcão há uma lágrima infantil chorando sobre o peito seco da mãe. Enquanto um come o outro sente fome. Vivemos à sombra do mito. O que dizer ao diário? Sim, sim, vi uma gaiola com um pássaro amarelo dentro e um menino correndo na rua: se branco, brincando; se preto, ladrão – é que tudo tem um “se”, assim é o mundo, cheio de coisas estranhas e não teria outro jeito de ser mais infeliz do que procurando a felicidade.

O diário é tão pequeno para caber coisa grande. Grande é o mundo dessa pequena flor. Ah, é muita destruição para um frágil pedaço de papel afinal. Pobre humanidade que assiste inerte à destruição das matas e todo dia crucifica Cristo. Confesso, mas não peço perdão, não há razão para isso, basta um “se” e pronto! Tanta coisa para dizer sobre o que está dentro, melhor mesmo é deixar a primeira página do Diário em branco.

 

Bethe Oliveira. Economista. Autora de Loucas e Bruxas, Bruxas e Loucas: contos e poeminhas. Editora 3 Serpentes.

 

 

 

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