Como alguém chega aos 87 anos com disposição para o trabalho, iniciativa, espírito humanitário e esperança diante da História?
Com um grande ideal. É assim que vive Clara Charf, militante política desde a juventude e viúva do “inimigo número um da ditadura militar”, Carlos Marighella, assassinado na capital paulista em 1969 por agentes do Dops, aos 57 anos.
Clara integrou a primeira lista de mulheres cassadas no Brasil, após o golpe militar de 1964, dado o seu comprometimento com os movimentos sociais. À época, participava, entre outras atividades, da Liga Feminina do Estado da Guanabara. A questão das mulheres sempre esteve na sua pauta.
Mas aquele não foi o primeiro governo opressor ao qual ela se opôs. Já havia enfrentado a ditadura Vargas (1937-1945) antes e ficou presa, durante quatro meses, por ser membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Durante os anos 60, na clandestinidade junto com Marighella, manter a vida e o combate ao regime militar não eram tarefas simples. Impedidos de exercer sua cidadania, não podiam arranjar emprego. Fugindo da perseguição, mudavam de nome e de endereço constantemente. Levavam consigo pouquíssimos pertences e não tiveram filhos. Clara também ficou muitos anos sem poder rir, porque seria facilmente identificada pelo sorriso.
Com a morte de Marighella, o cerco fechou mais e ela precisou sair do Brasil. Encontrou exílio em Cuba. Sozinha em outro país, enfrentando o luto recente pelo marido, distante de familiares e amigos, Clara atravessou momentos duríssimos. Aos poucos, foi se estabelecendo como tradutora e voltou a viver. Ali ficou durante quase dez anos. “Tenho muita gratidão àquele povo”, diz, bastante emocionada.
Anunciada a anistia em 1979, Clara voltou para o Brasil. Novas dificuldades. Arranjar emprego não foi fácil. Com a nação ainda reticente com a repressão, quem daria emprego a uma exilada política que acabara de voltar de Cuba?
Sérgio Motta. Empresário, também fora militante de esquerda e mais tarde seria ministro das Comunicações de Fernando Henrique Cardoso.
À essa época, a comissão de mulheres do recém-criado PT a procurou e propôs que se candidatasse a deputada estadual. “Eu nunca havia pensado nisso, mas aceitei”, diz Clara. E, embora não tenha sido eleita, mas obteve votação expressiva: 19 mil votos. A partir de então, tornou-se bastante conhecida.
E suas batalhas, embora sempre tenham defendido os mesmos princípios, assumiram novas formas. Atualmente, é presidente nacional da Associação Mulheres pela Paz, membro da Secretaria de Mulheres do PT e integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Foi coordenadora da campanha “Mil Mulheres pela Paz”, que indicou coletivamente mulheres que atuam na construção da cultura de paz ao Prêmio Nobel da Paz 2005. No mesmo ano, recebeu o prestigioso Diploma Bertha Lutz, do Senado Federal.
O tempo também lhe entregou outros prêmios: em 1996, o Ministério da Justiça brasileiro reconheceu a responsabilidade do Estado pela morte de Carlos Marighella e, em 2012, o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo oficializou a anistia post mortem do líder.
O vínculo e o respeito de Clara com a memória do companheiro persistem com profundidade, mesmo após os 43 anos de sua ausência. Ela relata faces mais prosaicas do revolucionário: “Era um feminista. Em casa, dividíamos as tarefas. Ele achava injusto que eu fizesse tudo sozinha”. Na convivência, “era um ser humano extraordinário. Simples, culto, honesto, solidário, atencioso, brincalhão. As crianças gostavam muito dele”, conta, com os olhos marejados e a voz embargada.
Em Rio Branco durante esta semana, Clara participa de diversos eventos, em parceria com a Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres (SEPMulheres), sob a temática do combate ao tráfico humano e à violência contra a mulher. E, embora tenha quebrado o fêmur há três anos e encontre dificuldade de se locomover sozinha, dá palestras em todo o país.
De certo modo, a menina que queria ser aviadora – e até chegou a ser aeromoça – realizou seu sonho. Com franca lealdade ao princípio da dignidade humana, tem contribuído, ao longo de décadas de trabalho, para que todas as pessoas possam alcançar patamares de vida mais elevados. E, em duas frases, resume tudo: “Eu não planejei esta vida. Eu só sabia que queria ser livre”.