Aleatoriedades da modernidade

Esta semana estava zapeando canais na TV antes de dormir e me deparei com um documentário sobre o racismo nos Estados Unidos nas décadas de 50 e 60. Vi cenas deprimentes de negros sendo humilhados, impedidos de estudar em escolas de brancos, com a segregação latente se espalhando por diversas camadas da sociedade, separando as pessoas brancas das “de cor”.

Depois de um verdadeiro show de horrores, veio a redenção: boa parte da população americana, sobretudo do norte do país, não tolerava mais esses absurdos, e o debate chegou até Washington D.C., quando o Congresso aprovou a Lei dos Direitos Civis (em 1964) e do Direito ao Voto (em 1967), que garantiram direitos iguais sem discriminação baseada em raça, encerrando assim a segregação institucionalizada.

Com apoio popular, muitos grupos surgiram em defesa dos negros, como o mais popular deles, os Panteras Negras. O documentário também cita outros movimentos importantes, como o feminismo, pautas em favor dos LGBTQ+, da preservação de florestas, dos direitos humanos e tribos indígenas, entre outros.

À parte os excessos, naturais em todas as formas de expressão idealizadas pelo homem, esses movimentos foram, e são, até hoje, muito importantes para garantir direitos a camadas estigmatizadas no passado, impondo novos padrões à sociedade.

Mas (sempre há um “mas”) alguns grupos de indivíduos ainda continuam oprimidos e sem apoio específico, nem mesmo dos mais ferrenhos defensores das minorias. Na minha opinião, isso ocorre por suas pautas serem consideradas “irrelevantes” pela maioria das pessoas, que não conseguem enxergar alguns tipos específicos de opressão e sofrimento.

Os incels, homens heterossexuais que cumprem “celibatário involuntário”, fazem parte desse segmento. Antes de conhecer melhor esse grupo, tinha as piores impressões possíveis, por vê-los ligados a massacres e assassinatos em massa nos Estados Unidos, e sempre sendo depreciados nas matérias, como se fossem verdadeiros “monstros sem alma”, como um jornalista os chamou certa vez.

O Coringa do filme de 2019, interpretado por Joaquin Phoenix, é considerado um incel clássico.

Minha percepção mudou a partir do momento em que ouvi um podcast dedicado aos incels, mostrando como essas pessoas vivem e suas amarguras e desventuras. Por motivo de segurança e bom senso, opto por não divulgar o nome do veículo, pela linguagem “+18” e assuntos sensíveis. Ouvi-los sem dúvida não é pra qualquer pessoa.

Os relatos me fizeram entender o quanto são estigmatizados, incompreendidos e numerosos. Eles estão por toda a parte, e a maioria nem sabe que é um incel. Logo no primeiro episódio que escutei, um homem de 30 anos relatava o quanto foi rejeitado por toda vida, não apenas pelas mulheres, mas pela sociedade em geral, por, segundo ele, não ter “nada de valor” para dar aos outros, por ser feio, tímido, pobre, não ser engraçado e ter inteligência mediana.

Num mundo perfeito e idealizado por sonhadores, bastaria chegar a esse adulto e lhe dizer que suas dores são relativas, que a beleza está nos olhos de quem vê, entre outros argumentos superbem fundamentados por livros de autoajuda. Mas a realidade é outra, e está cada vez mais ligada à necessidade de aceitação e validação, aspecto evocado principalmente nas redes sociais.

Tomemos como exemplo o Instagram. Com suas ferramentas de interação, verdadeiras bolhas sociais são formadas, e lá o indivíduo se depara com temas segmentados, escolhidos com o objetivo de lhe deixar o maior número de horas por dia ligado na plataforma.

A maioria do conteúdo veiculado é caracterizado por distorções da realidade, em que todos estão sempre muito felizes, são ricos, bonitos e seus sonhos são realizados aparentemente sem esforço nenhum. No meio disso tudo, o usuário cria meios de moldar sua própria realidade virtual para se adequar aos outros, sempre buscando muitos seguidores e o maior número de curtidas possível.

Segundo vários estudos, esse tipo de estímulo é comparado ao uso de drogas em nosso cérebro, aumentando a ansiedade, e a falsa realidade causa um sentimento constante de frustração, potencializando casos de depressão e outros distúrbios, como a síndrome do pânico.

No caso de autores de massacres nos EUA, tidos por incels, é senso comum entre especialistas que os atos foram realizados como “resposta” aos anos de sofrimento e ostracismo de jovens “invisíveis”. O roteiro é meio clichê, mas geralmente é um adolescente que tem poucos ou nenhum amigo, com interatividade social quase nula, sendo constantemente rejeitado ou ignorado por mulheres e que vê no ambiente externo uma fonte diária de sofrimento contínuo.

Com a autoestima baixa, presume que suas metas não serão concretizadas, e não raro veem no suicídio uma fuga rápida de sua triste realidade.

Como ficam muito tempo sozinhos e dentro de casa, passam várias horas navegando pela internet, e um dos “alvos” preferidos dos incels são as digital influencers. Com corpos sarados, rostos impecáveis e desenvoltura, elas produzem efeito hipnótico sobre esses rapazes, não apenas no comportamento sexual (masturbação), mas até como obsessão em alguns casos.

Digital influencer “padrão”

Elas aparentam uma vida perfeita e sem muitas preocupações, conseguindo, a julgar pelas fotos, terem relações ótimas com familiares, amigos e sociedade em geral, tendo total controle sobre suas atitudes, numa vida sem muitos deslizes. É lógico que tudo não passa de fingimento bem arquitetado, já que o site é utilizado para “simular virtudes” e promover uma espécie de realidade paralela, que só existe no mundo virtual.

A influencer Mayra Cardi é uma prova concreta disso. Passou anos postando fotos, vídeos e stories com seu marido, em que tudo era maravilhoso e perfeito, mas, quando houve crise em seu casamento, seu mundo fake ruiu, e ela teve de admitir que tudo não passava de fingimento.

O extremo oposto dos incels, também conhecidos no Brasil como “betas”, são os “homens alfa”. Ao contrário dos incels, são autoconfiantes, são assediados pelas mulheres e, quando adultos, possuem empregos de alto padrão. No popular, são os “bons partidos”, como se dizia antigamente.

Os alfas estão para as digital influercers assim como o hidrogênio está para o oxigênio, a tampa está para a panela e a camisa branca está para o tomate, e vice-versa. Ambos estão no topo da pirâmide do sucesso material, financeiro e pessoal, são invejados pela maioria das pessoas e possuem uma espécie de aura, ou pertencem a uma casta que os diferencia naturalmente das outras pessoas.

Estereótipo do macho alfa

Mas, nesse verdadeiro samba cultural, étnico, ético e ideológico que a modernidade ajuda a propagar pela internet, algumas vezes o tiro sai pela culatra e ninguém se dá conta de que todos os assuntos citados fazem parte de um só.

Existem poucas verdades absolutas, tal como a certeza da morte, como também a de que nada é por acaso, e tudo tem um porquê. Mês passado foi divulgado que o jogador Luan, do Corinthians, está com depressão. Segundo a imprensa, isso tem dificultado o retorno, ao “Timão”, de seu bom futebol dos tempos de Grêmio.

Ganhando R$600 mil por mês, é natural que tenha sido projetado ao posto de macho alfa, mesmo tendo origem humilde, mas ainda assim ele padece do “mal do século”. Claro que só um médico pra determinar com exatidão o que se passa com o atleta, mas os número alarmante de casos – a doença atinge 300 milhões de pessoas no mundo – mostra que essa enfermidade é um dos principais efeitos colaterais da modernidade, não importando se a pessoa é incel, influencer ou alfa.

Mauro Tavernard é jornalista na Secretaria de Estado de Indústria, Ciência e Tecnologia do Acre (Seict). Também é escritor, autor de três livros – sendo um best-seller -, produtor de revistas e encartes e roteirista de vídeo

 

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