A música que liberta e ecoa entre as grades

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A música é uma forma de ressocialização dos internos (Foto: Angela Peres)

Os muros altos, a pintura com cores frias e o forte esquema de segurança não deixam o visitante esquecer que ali é um local onde os adolescentes estão cerceados de sua liberdade. Mas também é dali, daquele ambiente, que à primeira vista parece hostil, que no entardecer de um dia comum, eles sorriem, tocam e cantam com uma alegria capaz de extrapolar as grades que os cercam.

Esse lugar é o Centro Socioeducativo Santa Juliana (CSJ), em Rio Branco. O espaço abriga em média 100 menores infratores que cumprem medidas socioeducativas, e por isso devem permanecer no local por meses e até anos, para regularizarem-se com a lei.  E é na música que cerca de 30 desses jovens estão encontrando uma forma de libertação interior, recuperando sonhos e vislumbrando futuros.

Estes jovens estão incluídos no Projeto Som da Liberdade que surgiu no Acre em 2015, como uma alternativa para a reinserção social por meio da iniciação musical.

Cerca de 30 menores infratores participam do projeto (Foto: Angela Peres)

O caminho da tragédia

Não muito diferente das histórias dos demais menores da unidade, W. L. S., de 17 anos, cometeu um crime que custou sua liberdade. Ele está há quase dois no local em regime de internação. Espontâneo e carismático, o jovem conta que foi criado pela bisavó materna.

“Quando eu nasci minha mãe não podia cuidar muito de mim, aí eu fui para a casa da minha bisavó pra ser cuidado por ela. Ela me levava para igreja, eu tocava bateria, recolhia o dízimo, só que chegou uma hora que eu cansei daquilo, enjoei e tal”, diz.

Foi então que W.L. S., na época com 15 anos, decidiu sair de casa para ir morar com a mãe, que não o criava porque já vivia em conflito com a lei. “Fugi de casa para ir morar com a mãe para conhecer o lado do crime”, conta.

No novo lar, o adolescente passa a conviver diariamente com os entorpecentes. “Quando eu cheguei no bairro comecei a me envolver com os meninos, lá em casa também, com negócio de droga, aí comecei a vender e até usar”, revela.

De acordo com o menor, o dinheiro fácil e a falta de controle da família foram propícios para se firmar no meio. “Logo eu fui trabalhar em boca, faturava mil mil reais por semana e gastava tudo em ‘piseiros’ [festas] e bebidas. Aí eu gostava, né?! Porque na hora que a gente tá sob efeito dessas coisas nem pensa em nada”, conta.

A vida desregrada de W. L. S. durou até o dia em que se desentendeu com um rival e em um ato passional cometeu um crime.

[aspas fala=”Hoje tenho consciência do que fiz e me arrependo muito. Quando sair, vou seguir outra vida, porque essa daqui não adiantou de nada, não” autor=”W.L.S.”]

Consequências

E foi assim que o adolescente foi parar dentro de uma unidade do Instituto Socioeducativo do Acre (ISE).  As únicas visitas que recebe é da matriarca e de uma tia. “Quando o cara vem pra cá, os amigos esquecem que você tá aqui, acaba o dinheiro, acaba tudo. Aí a gente pensa na vida né, nos atos que a gente fez”, desabafa.

Com uma expressão triste ele conta que o tempo sozinho tem o feito repensar nos atos e despertado o desejo de mudar de vida, e que as aulas de violão do Som da Liberdade têm sido uma grande aliada.

“Hoje tenho consciência do que fiz e me arrependo muito. Quando sair, vou seguir outra vida, porque essa daqui não adiantou de nada, não. Vou voltar para a igreja, trocar de bairro e seguir um rumo que não me traga de volta. Não quero ver mais a minha bisa sofrendo”, desabafa.

A música que liberta

O jovem ainda vai ficar em regime de internação por mais três anos. E diz que as aulas funcionam como uma válvula de escape para a falta de liberdade. “Comecei a fazer aula de violão em agosto do ano passado e isso tem mudado a minha vida, porque quando estou tocando esqueço as coisas ruins e principalmente do ato que fiz, porque isso me incomoda muito”.

O refúgio que encontra na música é reforçado pelo professor e pelos agentes que guardam o local. “Eles me dão muitos conselhos e me ensinaram que posso ser alguém melhor. E se eu me aprimorar, lá fora eu posso chegar muito longe na carreira musical, porque desde quando eu tocava bateria, que queria tocar violão e nunca tinha tido a chance. Aqui dentro foi que fui ter e estou aprendendo cada vez mais”, comemora.

O jovem é um dos destaques do grupo e por seu bom desempenho foi um dos escolhidos para se apresentar em um evento externo. “Nesse dia me senti outra pessoa, me senti mais livre, sem nenhum incômodo de polícia atrás de mim. Lado a lado do governador, me senti uma pessoa normal, não uma pessoa procurada”, suspira.

[aspas fala=”Desde quando eu tocava bateria, que queria tocar violão e nunca tinha tido a chance. Aqui dentro foi que fui ter e estou aprendendo cada vez mais” autor=”W.L.S.”]

O futuro

A sensação de liberdade, mesmo que por pouco tempo, provocou mudanças mais profundas. “Já estou tentando continuar meus estudos, porque parei no oitavo ano. Estão arrumando para eu continuar e, quando sair daqui, vou fazer uma faculdade e também continuar com minhas aulas de violão. Se der, até com o professor daqui mesmo”, conta, sorridente.

Adolescentes em regime de internação na unidade Santa Juliana (Foto: Angela Peres/Secom)

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Outras vidas

Outro socioeducando do projeto é C. M. S. Ele está cumprindo medidas por tráfico de drogas há três meses. Diferente de W.L.S., ele conta que cometeu o ato ilícito por influência dos amigos. “Eu era uma pessoa de boa, meus pais e avós sempre me ajudaram financeiramente. O problema foi os meus parceiros que viviam me chamando e fui pegar corda e um dia tive a curiosidade para saber como funcionava esse mundo”, diz.

[aspas fala=”Vou terminar meus estudos e um dia vou ser médico. Enquanto isso, vou trabalhar com o que vier, caixa de supermercado, qualquer profissão que seja honesta” autor=”C.M.S.”]

Visivelmente arrependido, ele conta que foi a primeira vez que praticou um crime. “Achei que ia sair na delegacia, porque vi muitos dos meus colegas saindo, mas me enrolei e estou aqui”, sorri desconcertado.  Revela ainda que é bem tratado, mas estar cercado por muros torna a vida difícil.

“Fico aguardando ansioso os ensaios, porque aí posso sair da cela e ficar mais alegre, rir, cantar, brincar passar o tempo e ocupar a mente. Além disso, tem o aprendizado, né?! Que vou poder levar lá para fora, não só os conhecimentos técnicos, mas os conselhos que o professor dá para a gente mudar de vida”, conta.

Assim como W.L.S., C.M.S. também sonha em fazer faculdade. “Se Deus quiser vou sair logo. Vai passar rápido e nunca mais caio nessa. Vou terminar meus estudos e um dia vou ser médico. Enquanto isso, vou trabalhar com o que vier, caixa de supermercado, qualquer profissão que seja honesta”, diz.

Sobre o projeto

Apoiado pelo ISE o projeto funciona às terças e quintas-feiras. Nas palavras do professor Antônio Nascimento: “O Som da Liberdade  é o primeiro passo para levá-los até lá fora. É um projeto ambicioso, mas que tem dado certo, porque os aprendizados aqui vão além do ato de tocar”, enfatiza.

De acordo com o instrutor, muitos profissionais trabalham dentro do projeto para que os jovens infratores cumpram suas penas e, ao sair das unidades, tenham oportunidades reais de mudanças. “Antes de aprender a técnica eles têm que aprender sobre disciplina, sobre comportamentos e outros valores que vão formá-los como cidadãos”, destaca.

Além do gabinete da Vice Governadoria e do ISE, a ação conta com um grande número de colaboradores. Entre eles, o Ministério Público do Acre (MPAC), o Movimentos de Mulheres Camponesas, (MMC), a Assessoria Especial da Juventude (Assejuv), a Fundação Elias Mansour (FEM) entre outras instituições locais.

A música é uma válvula de escape para a falta de liberdade (Foto: Angela Peres/Secom)

Extensão

A princípio, a iniciativa foi idealizada apenas para ensinar os menores em medidas socioeducativas a tocar violão. Mas, ao longo dos anos se expandiu para comunidades e também escolas como forma também de prevenir e evitar a criminalidade. Começou como projeto-piloto com 194 jovens e atualmente atende 254. A meta é chegar a mais 370 ainda este ano.

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